Ciclos Vitais

Solange Maria Rosset

Outubro de 2001.

 

Hoje, falar sobre Ciclos Vitais, ou sobre Ciclos de Desenvolvimento é correr o risco de ao terminar de escrever coisas importantes que foram escritas já terem mudado !

Vivemos um momento de mundo em que as verdades, os parâmetros se alteram mais rápido do que podemos nos organizar para assimilá-los. Portanto só tem validade falarmos sobre ciclos vitais se levarmos em conta o contexto de espaço e tempo circunstanciado em que estamos nos referindo.

Ainda não existe um estudo completo sobre os Ciclos Vitais Familiares Brasileiros. Ao pensarmos no assunto, nos baseamos no que já está estudado e escrito ( na maioria de americanos) na prática clínica, no bom senso.

A definição de idades e de normalidade são as primeiras que balançam. Hoje tudo está acontecendo mais cedo, seja pelas necessidades, seja pela globalização, seja pela rapidez de informação, seja pelos hormônios e "venenos" que ingerimos com os alimentos, com a água e com o ar.

Outra variável é que as pessoas estão vivendo muito mais que antes. Isso altera toda a definição do que é velhice, quando se fica velho e outros conceitos que antes nos davam um norte. Além de viverem mais as pessoas estão envelhecendo cronologicamente, mas continuam ágeis e lúcidas e mantendo sua autonomia.

Uma idéia importante quando falamos em ciclos vitais é de que cada ciclo traz uma aprendizagem específica, algo que precisa ser conquistado ou algo que precisa ser deixado de lado. Essa compreensão nos leva a ver a entrada e saída nas fases de desenvolvimento realmente como etapas de aprendizagens, níveis a serem alcançados

Quando penso em ciclos vitais sempre junto ao que acontece aquilo que se precisa aprender. Essa forma de olhar ajuda a, partindo do que é comum, ir adaptando a cada família e indivíduo de acordo com suas vivências e situações peculiares, ajudando a realizar de forma mais funcional as aprendizagens e acomodações necessárias.

Costumo dividir os ciclos vitais em previsíveis e especiais. Os previsíveis são os que toda as famílias passarão, ou algum de seus membros, ou pelo menos estarão com possibilidade de passar. Chamo de ciclos vitais especiais aqueles que ocorrerão ou não numa família, trazendo crises, reformas e reformulações.

Os Ciclos Vitais Previsíveis começam com o Nascer e terminam com o Morrer.

Nascer - O principal acontecimento é o corte energético que ocorre entre o sistema materno e o sistema filho. Muito se tem falado sobre isso, e hoje não se discute mais a importância desse fato e de como pode-se melhorar ou piorar essa ruptura. A aprendizagem é manter o mais possível essa condição energética, facilitando o contato da mãe com o bebe para que possam retomar a ligação afetiva energética não mais uma dentro da outra, mas as duas próximas e interligadas.

Andar - A metáfora do andar é ficar firme sobre suas próprias pernas, "ficar nas suas pernas" significa ser independente, poder ir e vir. Ao se preparar para andar a criança passará por fases importantes ( arrastar-se, engatinhar, sentar, firmar-se) que são importantes metafórica e fisicamente falando para poder andar plenamente, nos dois sentidos também. Apressar, pular fases, retardar o andar trará sinais diferentes no andar definitivo. Ao mesmo tempo que andar traz independência e seus ganhos , traz também a outra face que nos levará a lidar com a solidão, com as escolhas, com os riscos que o andar e a independência traz.

Falar - Ë fazer parte. Através da comunicação e especialmente da fala articulada e compreensível a criança assume um espaço naquele sistema familiar e social. A partir disso ela adquire direitos de estar ali, de tomar parte, de se expressar, de ser alguém que marca presença. Forçar para que isso ocorra é tão disfuncional quanto manter a criança balbuciando e todos os familiares "compreendendo" seus grunhidos.

Nascimento de irmãos - A primeira coisa que se relaciona com a vinda de um irmão é a lista de perdas que a criança terá. Isso é real, doloroso e importante para o amadurecimento da criança. Poupá-la dessa vivência não a ajudará a lidar com os sentimentos mais importantes das relações humanas: raiva, medo, alegria, angústia, pesar, com seus acompanhantes: vingança, proteção, ataque, defesa, previsão, preparação. Só para citar uns poucos itens que a vinda de um irmão desencadeia e ajuda a aprender a lidar. Minuchin diz que o subsistema fraternal é o primeiro laboratório social e portanto tão importante na aprendizagem de ser humano e social. A família precisará aprender a colocar em marcha as reorganizações necessárias.

Ir escola - Essa etapa de ida à escola é a inserção da criança e dos pais no mundo social, sem poderem se esconder. Ou seja a criança não tem como evitar a solidão, o medo, o desconhecido. Isso vai ocorrer, é inevitável e será a primeira vez que a criança terá que contar com seus próprios instrumentos ou terá que aprender a pedir ajuda a pessoas estranhas, que não tem garantia de serem confiáveis. Se ela aprender a confiar em si e confiar nos outros ( e aí a tarefa dos pais desencadearem isso é definidor !) levará essa aprendizagem para todos os setores futuros da sua vida. Para os pais é o momento de mostrar o que fizeram com seu filho e aguardar a avaliação e o veredito do social. Não têm como evitar isso. É claro que podem inventar álibis e história, mas dentro de si a maioria dos pais, sabe que através do comportamento e da competência dos seus filhos na escola eles estarão sendo julgados. E isso é difícil, pois traz à tona todas as inseguranças, culpas, dúvidas e angústias.

Alfabetização - A entrada no mundo cultural se dá quando a criança começa a ler e escrever. Por mais que ela recebesse essa cultura (histórias, leituras, brincadeiras, relatos) através dos pais e avós - e isso sempre é muito importante e ajudará a inserção da criança - agora ela passa a ser um sujeito que atua na cultura, seja escrevendo, seja lendo, seja criticando o lido e escrito. A tarefa dos pais é qualificar toda produção da criança, participando do seu crescimento cultural e artístico.

Pré adolescência - É uma fase muito difícil, talvez a mais difícil, pois é a fase do "não ser". Não é adulto, não é criança, nem adolescente é ! Não entende o que está acontecendo no seu corpo, na sua alma, na sua vida. Faz todos os esforços para ser um adolescente, mas não consegue deixar de reagir como uma criança. Ou seja é a época do limbo. E também é a época dos pais treinarem amor incondicional. Ou pelo menos compaixão e compreensão ....

Adolescência - É a fase de definir qual o adulto que se quer ser. Um adolescente funcional deve trabalhar e/ou estudar, ter uma turma, ter vida afetiva , te responsabilidades nas tarefas de casa. Essas compreensões não significam que a adolescência é uma fase fácil. A mesma crise de identidade da pre adolescência se mantém, e em algumas circunstância pioram. Não é adulto ( mesmo que exigido em algumas tarefas e resultados), não é criança ( mesmo que mantido na "cozinha com as crianças" nas horas importantes), não tem vida sexual permitida ( mesmo estando com sua energia de sexualidade a mil por hora !!), não é bonito nem feio ( mesmo que seja ou possa ser , não mantém o que enxerga), não é capaz nem incapaz ( pode, sabe, quer muito, mas nem sempre acredita que e no que sabe, pode ou quer). Aos pais cabe a aprendizagem de desenvolver sentimentos e comportamentos de respeito e compartilhamento.

Adulto jovem - É a fase de checar e desenvolver a competência, seja no estudo, no trabalho, como nos namoros e relacionamentos. É a fase de treinar e por em prática na sua vida tudo que aprendeu até agora : pertencimento, intimidade, limites, responsabilidades, expressão ...

Adulto - É a fase de treinar e desenvolver autonomia . Sendo que autonomia, não é a mera independência, mas sim a certeza de que pode se organizar sozinho, que sabe das suas competências e impotências, que tem clareza da sua capacidade e potência real, mas que sabe pedir, depender, aceitar o outro, receber ajuda, carinho e tudo o que lhe enriquecer ou fizer falta.

Saída de casa - As tarefas dessa etapa são: aceitar a responsabilidade emocional e financeira pelo eu, diferenciação do eu em relação a família de origem, desenvolvimento de relacionamentos íntimos com adultos iguais, estabelecimento do eu com relação ao trabalho e independência financeira.

É a fase de separar-se para poder pertencer e juntar-se . Sair do conhecido, do protegido, passar a ser sozinho e individual são situações básicas que preparam para escolher parceiros e desenvolver uma vida em conjunto.

Casamento - É o comprometimento com um novo sistema. Na formação do sistema conjugal, há um realinhamento dos relacionamentos com as famílias ampliadas e os amigos para incluir o cônjuge.

Nascimento filhos - O dilema maior desta fase é aceitar funcionalmente novos membros no sistema. Pressupõe ajustar o sistema conjugal para criar espaço para o(s) filho(s), unir-se nas tarefas de educação dos filhos, nas tarefas financeiras e domésticas, realinhamento dos relacionamentos com a família ampliada para incluir os papéis de pais e avós.

Famílias com adolescentes - Aumentar a flexibilidade das fronteiras familiares para incluir a independência dos filhos e as fragilidades dos avós é uma das tarefas mais difíceis mas mais importantes. Assim como modificar os relacionamentos progenitores-filhos para permitir ao adolescente movimentar-se para dentro e para fora do sistema; desenvolver novos focos nas questões conjugais e profissionais do meio da vida; e começar as mudanças no sentido de cuidar da geração mais velha.

Lançando os filhos - O desafio maior é aceitar as várias saídas e entradas no sistema familiar. Acrescido da necessidade de renegociar o sistema conjugal como díade, desenvolver um relacionamento de adulto-para-adulto entre os filhos crescidos e seus pais, e o realinhamento dos relacionamentos para incluir parentes por afinidade e netos, e lidar com incapacidades e morte dos pais (avós).

Meia idade - É a época de avaliação do já feito, com possibilidades de redefinições e reescolha das opções antes realizadas. Ainda dá tempo para tudo que quiser !

Menopausa - A redefinição da identidade sexual, podendo trazer novos movimentos e experiências.

Aposentadoria - É a fase da redefinição da identidade profissional e de competência. Possibilita a reorganização dos projetos de vida.

Velhice - O desafio é aceitar a mudança dos papéis geracionais. A família tem como tarefas manter o funcionamento e os interesses próprios e / ou do casal em face do declínio fisiológico; apoiar um papel mais central da geração do meio; abrir espaço no sistema para a sabedoria e experiência dos idosos, apoiando a geração mais velha sem superfuncionar por ela; lidar com a perda do cônjuge, irmãos e outros iguais e preparar-se para a própria morte. É o momento da revisão e integração da vida.

Morte - A preparação inclui definições e redefinições espirituais e relacionais.

Os Ciclos Vitais Especiais, também trazem suas dificuldades, seus desafio e a possibilidade de grandes aprendizagens.

Divórcio

A primeira fase do divórcio é a decisão de divorciar-se, que inclui a aceitação da incapacidade de solucionar as tensões conjugais de forma suficiente para manter o relacionamento, e a aceitação da própria participação no fracasso do casamento

A seguir vem a etapa de planejar a separação do sistema, que inclui apoiar arranjos viáveis para todas as partes do sistema, resolver cooperativamente os problemas da custódia, manter a família ampliada com relação ao divórcio

E então vem a separação de fato, com as dificuldades e tarefas de se dispor a continuar um relacionamento co-paternal cooperativo e o sustento financeiro dos filhos. Acrescido da necessidade de viver o luto pela perda da família intacta; de lutar para a reestruturação dos relacionamentos da díade e progenitor-filhos, e das finanças; da adaptação a viver separado, mas realinhando com o parentesco com a família ampliada.

A etapa da concretização do divórcio, possibilita maior elaboração do divórcio emocional: superar mágoa, raiva, culpa, luto pela perda da família intacta , abandonar fantasias de reunião, permanecendo conectado com as famílias ampliadas

A fase pós separação e divórcio traz para o cônjuge que fica com a custódia dos filhos as tarefas e aprendizagens de continuar com disposição para manter as responsabilidades financeiras, continuar o contato com o ex-cônjuge e apoiar o contato dos filhos com o ex-cônjuge e sua família, fazer arranjos de visita flexíveis com o ex-cônjuge e sua família, reconstruir os próprios recursos financeiros, reconstruir a própria rede social. Para o cônjuge que não fica com a custódia dos filhos, as tarefas e aprendizagens são de continuar com disposição para manter o contato com o ex-cônjuge e apoiar o relacionamento dos filhos com o progenitor que tem a custódia, descobrir maneiras de manter uma paternidade efetiva, manter as responsabilidades financeiras com o ex-cônjuge e os filhos, reconstruir a própria rede social.

Recasamento

Ao iniciar um novo relacionamento, é necessária a recuperação em relação às perdas do primeiro casamento - "divórcio emocional" adequado para poder haver um recomprometimento com o casamento e com a formação de uma família.

Ao planejar o novo casamento e a nova família, é necessário aceitar os próprios medos e os do novo cônjuge e dos filhos em relação ao recasamento e a formação de uma família por segundo casamento, aceitando a necessidade de tempo e paciência para o ajustamento as complexidades e ambigüidades de: múltiplos papéis novos, fronteiras, espaço, tempo, condição de fazer parte da família, autoridade, questões afetivas, culpa, conflitos de lealdade, desejo de mutualidade, mágoas passadas não- resolvidas. As aprendizagens ainda incluem trabalhar a honestidade nos novos relacionamentos para evitar os mal entendidos, planejar a manutenção de relacionamentos financeiros e de co-paternidade cooperativos com os êx cônjuges, planejar como ajudar os filhos a lidarem com seus medos, conflitos de lealdade, e condição de fazer parte de dois sistemas, realinhamento dos relacionamentos com a família ampliada para incluir o novo cônjuge e filhos, planejar a manutenção das conexões das crianças com a família do(s) êx-cônjuge(s).

Na efetivação do recasamento o desafio maior é a aceitação de um modelo diferente de família com fronteiras permeáveis, com a inclusão do novo cônjuge-padrasto ou madrasta, realinhando os relacionamentos e arranjos financeiros em todos os subsistemas para permitir o entrelaçamento de vários sistemas; criar espaço para os relacionamentos de todos os filhos com os pais biológicos, avós e o restante da família ampliada; compartilhar lembranças e histórias para aumentar a integração da família por segundo casamento.

Acidentes - Cada situação traz no seu bojo a necessidade de reorganizar-se com as mudanças e as aprendizagens necessárias e específicas.

Perdas - Sejam elas de que natureza forem, é necessário lidar com todos os aspectos da perda : chorar a dor, expressar a raiva, limpar a culpa, para poder refazer o projeto de vida.

Na passagem dessas fases, algumas vezes é necessária a busca de um terapeuta/terapia que pode ajudar as famílias que se desorganizaram no ciclo de vida familiar a voltarem a sua trilha de desenvolvimentos e aprendizagens. O trabalho terapêutico pode ser com o cliente individual ou com todo o sistema ( até 4 gerações) dependendo da queixa, de quem procura, e das disponibilidades.

O estresse familiar é geralmente maior nos pontos de transição de um estágio para outro no processo de desenvolvimento familiar, e os sintomas tendem a aparecer mais quando há uma interrupção ou deslocamento no ciclo de vida familiar em desdobramento. Muitas vezes, é necessário dirigir os esforços terapêuticos para ajudar os membros da família a se reorganizarem, de modo a poderem prosseguir para as próximas fases.

A terapia vai ajudar e acompanhar as famílias ou os indivíduos de forma a lidar com as perdas (chorar a dor, viver a raiva ); preparar-se para a próxima fase; estabelecer rituais de passagem; ou resolver os sintomas.

Atualmente, existem muitas evidências de que os estresses familiares, que costumam ocorrer nos pontos de transição de ciclo de vida, freqüentemente criam rompimentos neste ciclo e produzem sintomas e disfunção.

A forma mais funcional de passar pelas etapas de desenvolvimento é tomar cuidado para manter a flexibilidade; não evitar de viver as emoções que são desencadeadas, sejam elas taxadas de positivas ou de negativas; lidar com a situação real, evitando as utopias; compreender racionalmente as fases, e seus componentes; exercitar a amorosidade e a compaixão. Assim será mais fácil desencadear as aprendizagens específicas de cada fase.