Construindo e sendo construída - O exercício da coerência

Solange Maria Rosset **

 

Biografia breve e Trajetória profissional

Ao pensar minha trajetória profissional, refletindo nas relações e nas aprendizagens percebi que o fio condutor da minha vida pessoal, bem como da minha vida profissional, foi sempre a busca da coerência entre o que aprendia/dizia/postulava profissionalmente e o que colocava em prática no âmbito pessoal. Da mesma forma, todas as vivências/descobertas/processos da vida pessoal, se integravam, modelando aspectos do profissional. Por causa deste entrelaçamento e da “compulsão” por desenvolver esta coerência, escrevi os dois itens – Biografia breve  e trajetória profissional – juntos.

 Nasci em 1953, numa cidade do interior paranaense, filha mais velha de um jovem casal de 21 e 23 anos. Alguns dados da situação familiar foram determinantes na estruturação do meu padrão de funcionamento, nas escolhas que fiz na vida e nas criações que fiz no âmbito profissional.

Fui a primeira mulher a nascer em três gerações de homens na família do meu pai. Estes homens, especialmente meus tios, me envolviam em suas atividades masculinas – futebol, acampamentos, brincadeiras – sempre salientando que eu podia participar de tudo, mas sempre nas características femininas das atividades. Cresci integrando, sem dificuldades e com leveza, os aspectos e as diferenças entre os sexos.

Minha mãe trabalhava – professora e contadora – desde seus 18 anos e tinha uma situação econômica e cultural diferenciada na cidade em que viviam. Sua família de origem era de fazendeiros e comerciantes “que haviam colonizado o oeste paranaense”. Meu pai, possuidor de uma criatividade e espírito de luta muito intensos, vinha de uma família de imigrantes italianos, que lutavam para se adaptar a uma nova cidade depois de deixarem a colônia italiana em Santa Catarina.

O padrão de funcionamento dos meus pais apresentava aspectos que mais tarde descobri e desenvolvi no pensamento sistêmico. Minha mãe, sempre enxergava e nos fazia enxergar – a mim e  a meus irmãos – os vários ângulos de cada situação. Suavemente, ela conseguia nos mostrar que todas as pessoas – especialmente seu marido – sempre tinham aspectos positivos e negativos, e de como poderíamos acessar esses aspectos. Quando queixávamos dele ela sempre trazia à tona suas boas qualidades. Meu pai, por sua vez, tinha formas de lidar com a realidade que me ensinaram algumas posturas com relação a escolhas, responsabilidades e ousadias. Entre elas: que podíamos fazer o que quiséssemos na vida, desde que nos responsabilizássemos pelas conseqüências; que enquanto vivêssemos na sua casa as regras eram claras e explícitas e deveriam ser seguidas; que devíamos escolher fazer ou não enquanto tivéssemos potência para decidir, e não nos queixarmos ou culparmos outros pelos acontecimentos.

Aos 10 anos fui para um internato feminino, aprendi a lidar com a solidão e a colocar em prática o olhar circular da minha mãe e a escolha e responsabilidade do meu pai. Aos 14 fui morar num pensionato em Curitiba, aos 17 entrei na faculdade de Psicologia da PUC PR – porque era o curso mais recente e mais interessante na cidade – e aos 18 me casei.

Minhas vidas pessoal e profissional foram se desenvolvendo juntamente, e não saberia dizer qual das duas foi determinante da outra. Meu marido – com o qual fiquei casada por 35 anos – soube me prender ao chão como uma forte âncora em alguns momentos, mas também soube não dificultar e até apreciar meus vôos independentes.

Na última metade da faculdade comecei a me angustiar com o que faria profissionalmente: sentia que o que aprendia não me preparava para trabalhar, não havia cursos de especialização em Curitiba, e eu não queria por meu casamento em risco saindo para fazer um curso fora. Coincidentemente, duas instituições de formação em Psicodrama, de São Paulo, resolveram montar uma turma em Curitiba. Apesar de ainda estar na graduação consegui ser selecionada para o curso. Terminei a graduação em 1975 e a experiência psicodramática deu rumo para minha vida profissional no consultório clínico e como professora.

Especializei-me em Psicodrama Terapêutico pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama e pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo em 1978; fui credenciada como Terapeuta de aluno e supervisor junto à FEBRAP (Federação Brasileira de Psicodrama) em 1980.

Em 1978 nasceu minha primeira filha e em 1981 meu filho.

Quando conheci a abordagem terapêutica corporal enxerguei a possibilidade de enriquecer o trabalho terapêutico, e em 1984 tornei-me especialista na Abordagem Corporal em Terapia, pelo Núcleo de Psicologia Clínica, como terapeuta e formadora de novos terapeutas nesta abordagem. Nessa mesma época conheci a abordagem sistêmica de terapia familiar. Já trabalhava com famílias desde o início da minha formação em psicodrama, mas o pensamento sistêmico com suas implicações na vida e na clínica me seduziram desde o primeiro momento. Dois aspectos foram determinantes nesse meu encantamento e são parte integrante de todos os trabalhos que faço até hoje: a possibilidade de dividir a responsabilidade da terapia com o cliente, desencadeando responsabilidades e mudanças; a possibilidade de instrumentar minhas características e meu funcionamento como elementos terapêuticos para o cliente.

Terminei minha especialização em Terapia Familiar, Abordagem Sistêmica, ministrada pela Psicóloga Zélia Nascimento de Belo Horizonte em 1985 e fiz o Practicum in Family Therapy, com o Dr. Maurizio Andolfi - Roma – Itália em 1988. As crises e aprendizagens deste treinamento foram profissionalmente reorganizadoras. O contato com Andolfi possibilitou que eu requalificasse algumas das minhas características como terapeuta, integrando e diferenciando do modelo que ele empregava; o contato com os colegas, terapeutas sistêmicos de vários lugares do mundo, com funcionamentos e formas de trabalhar tão diverso me mostrou que o que eu fazia, era uma síntese das formações em abordagens diferentes que eu tivera, fazendo com que meu perfil profissional fosse diferente dos terapeutas sistêmicos clássicos, pois incorporava as leituras corporais e a postura relacional do psicodrama. Também concluí que deveria explicitar e registrar essa diferença.

Na instituição que dirigi desde 1976, o Núcleo de Psicologia Clínica de Curitiba – PR coordenei projetos que além de me desenvolverem como terapeuta e professora treinaram e desenvolveram muitos outros terapeutas. Entre eles: a estruturação do Curso de Formação em Terapia Familiar Sistêmica ( formalmente, o primeiro no Brasil) em 1981; o Projeto de Reestruturação do Núcleo de Psicologia Clínica Curitiba - PR como Instituição Clínica-Escola, operando dentro de um referencial teórico, técnico e clínico  fornecido pelo pensamento sistêmico, a partir de 1986; o Projeto de Residência Clínica em Terapia Familiar Sistêmica de 1989 à 1991;  a estruturação da Terapia Relacional Sistêmica, desde 1985 e registrado como abordagem terapêutica em 1989.

A Terapia Relacional Sistêmica surgiu então para clarear e registrar as diferenças e postulados que a diferenciavam de outras propostas terapêuticas sistêmicas.

Em 1993, deixei a direção da instituição na qual trabalhei por 17 anos e após um ano de avaliações e reavaliações, reorganizei o meu trabalho clínico e de formação de profissionais. Mantive a proposta sistêmica, a postura relacional sistêmica, acrescentando a forma de trabalhar focada nos Padrões de Funcionamento.

Atualmente, sou Psicoterapeuta na abordagem Relacional Sistêmica, em Psicoterapia Individual e Grupal, Psicoterapia de Casal e Família. Sou professora e supervisora em cursos de Pós-graduação, Especialização e Formação de terapeutas em vários estados brasileiros.

Desenvolvo consultoria, workshops, palestras e cursos nas áreas de relacionamentos, terapia, atendimento de casais, famílias, indivíduos e grupos.

Publiquei vários artigos em jornais e revistas de circulação nacional. E sou autora de livros sobre relacionamentos familiares e sobre psicoterapia : Izabel Augusta – A família como caminho(2001); Pais e Filhos – Uma relação delicada(2003); O Casal nosso de cada dia(2004); 123 Técnicas de Psicoterapia Relacional Sistêmica(2004); Relações de casal(2005); A Magia da Mudança(2006); Terapia Relacional Sistêmica – Famílias, Casais, Indivíduos Grupos(2008); e autora do Cap. Famílias com Adolescentes no livro Manual de Terapia Familiar (2008).

Autores que ajudaram a construir o pensamento e a prática

Inicialmente, na fase da abordagem Psicodramática,  Moreno( Jacob Levi Moreno), Bustus (Dalmiro Manuel Bustus), Fonseca (José Fonseca Filho) e Victor Dias ( Vitor R. C. da Silva Dias).

Na fase inicial de Terapia Corporal, Reich (Willelm Reich), Lowen (Alexander Lowen), Romel (Romel Alves da Costa), depois... e atualmente Stupiggia (Mauricio Stupiggia).

Na Terapia Sistêmica, inicialmente Andolfi (Maurizio Andolfi), Whitaker (Carl A. Whitaker), Minuchin (Salvador Minuchin) e Virgínia Satir.

As influências que definiram e ainda mantém minhas propostas de trabalho: a compreensão relacional da relação terapêutica de Moreno e Fonseca, o trabalho biossistêmico de Stupiggia, o trabalho focado e criativo de Andolfi, a estrutura para a compreensão de padrões de funcionamento de Minuchin, a terapia como um processo de respeito e compaixão de Satir, o terapeuta como desencadeador de processos de Whitaker.

 O cerne do trabalho

Por meio da estruturação de um modelo terapêutico centrado nos padrões de funcionamento e vendo o terapeuta como responsável pelo padrão de relação do sistema terapêutico, certamente influenciei incontáveis alunos dos meus cursos de formação e de outros em que atuei em vários estados brasileiros, de forma a despertar novas reflexões sobre o papel do terapeuta, sobre a possibilidade de realizar um trabalho terapêutico focado e eficaz.

Sem dúvida, também influenciei na questão da importância do aprimoramento dos terapeutas de forma a cada vez terem mais consciência do seu próprio padrão de funcionamento, e assim ficarem mais hábeis para auxiliar o sistema que é seu cliente.

O que chamo padrão de funcionamento é a forma repetitiva que um sistema estabelece para agir e reagir às situações de vida e relacionais. Na maioria das vezes ele é inconsciente e automático. Engloba o que é dito e o que não é dito, a forma como são ditas e feitas as coisas, bem como todas as nuanças dos comportamentos. O padrão de funcionamento aparece em todos os aspectos da pessoa ou do sistema. Pode ser visto no corpo, no pensamento, no sentimento, na ação e, especialmente, nas relações.

Esse padrão se estrutura trigeracionalmente, a partir dos padrões de funcionamento dos sistemas familiares. Por volta dos 5 anos de idade a criança tem definido o seu próprio padrão que vai aos poucos se cristalizando.

O padrão de funcionamento não é bom nem ruim; não existe padrão de funcionamento melhor ou pior. O que faz diferença é o nível de consciência que o indivíduo tem do seu próprio padrão de funcionamento. A partir dessa consciência ele poderá ter controle sob alguns aspectos do seu padrão e ter maior possibilidade de escolhas nos seus relacionamentos e nos seus comportamentos

Dois aspectos do padrão de funcionamento que exemplificam bem essa possibilidade de consciência, controle e escolha são as compulsões relacionais e os álibis relacionais. Álibis relacionais são explicações psicológicas que protegem e dão desculpas para as pessoas evitarem situações e não ousarem fazer diferente. Cada pessoa, cada família ou casal tem seus álibis relacionais específicos, e eles cristalizam as relações, pois quem os usa sente-se autorizado a manter o comportamento, já que tem “razões psicologicamente corretas” que o protegem, e quem está recebendo essa desculpa sente-se amarrado e coagido a aceitar o comportamento mesmo que, de fato, não o aceite e enxergue que atrapalha o crescimento e desenvolvimento da pessoa e do relacionamento. Compulsões relacionais são as respostas automáticas que uma pessoa dá ao ser foco de uma ação relacional de alguém; são comportamentos automáticos a determinadas situações relacionais e que, de forma geral, estão ligadas a situações traumáticas vividas ou a situações com as quais não aprendeu a lidar. São chamadas compulsões relacionais porque ocorrem nos relacionamentos, por serem automáticas e, muitas vezes, sem consciência.

A partir dessa forma de ver, o terapeuta também está em processo contínuo de ter consciência e controle sobre seu padrão de funcionamento. Quanto maior a consciência e o controle que o terapeuta tem mais ele poderá instrumentar seu padrão de funcionamento de forma a ser útil no processo do seu cliente.

Ao estruturar uma abordagem terapêutica – a Terapia Relacional Sistêmica – criei um trabalho que serve de modelo e reflexão para inúmeros terapeutas.

Desde 1989, esta proposta terapêutica tem o nome de Terapia Relacional Sistêmica.

A peculiaridade desse trabalho é entre outros tópicos, o trabalho focado nos padrões de funcionamento – desenvolvimento de consciência do próprio padrão, aprendizagens necessárias, e mudanças pertinentes-; o trabalho estruturado e planejado a partir das necessidades, disponibilidades e condições de cada cliente. A importância da relação terapêutica para auxiliar o cliente nos seus processos e a compreensão de que ser relacional sistêmica não é uma teoria ou técnica, mas sim uma postura perante a vida, são dois outros tópicos importantes.

As características deste trabalho aparecem no trabalho clínico, que se fundamenta em pressupostos e posturas relacionais sistêmicas

A tarefa terapêutica é, então, auxiliar o cliente a ter consciência do seu próprio padrão de funcionamento; a partir disso, auxiliá-lo a realizar as aprendizagens que se fazem necessárias – aquelas que ficaram por fazer no processo de desenvolvimento ou que são necessárias nas novas fases que atravessa – e  auxiliá-lo a fazer as mudanças que são pertinentes.

Alguns itens na forma de trabalho, que são específicos da Terapia Relacional Sistêmica:

O processo terapêutico no enfoque relacional sistêmico é direcionado para auxiliar o cliente a:

Para desempenhar essa tarefa, o terapeuta irá trabalhar descobrindo e focando os padrões, os álibis, o funcionamento do cliente, de forma a poder:

 Toda a compreensão desta proposta pode ser vista nos livros Izabel Augusta – A família como caminho(2001) e Terapia Relacional Sistêmica – Famílias Casais Indivíduos Grupos (2008)