CORPO, MITO, DESTINO E LIBERDADE

Solange Maria Rosset

Escrito 1991

Revisto agosto 2002

Reescrito 2003

 

As idéias relatadas neste texto, e que foram inicialmente propostas no "Seminário Clínico do Núcleo de Psicologia Clínica" em 1991, são a minha forma de compreender as ligações entre o corpo que nos acompanha, os mitos familiares em que estamos emaranhados e as duas possibilidades de lidar com essa situação : como um destino inexorável ou como uma experiência de busca da liberdade.

O CORPO

O corpo físico é a primeira realidade do ser humano. É o que existe de mais pessoal de cada um, essa estrutura física que nos acompanha desde que nascemos até o dia em que morreremos.Quando o bebê nasce, ele tem um corpo mas não tem consciência desse corpo. Aos poucos conforme vai crescendo e dependendo das experiências que tiver, ele vai incorporando esse corpo. Ou seja ele vai tomando conta, vai possuindo o seu corpo. Através das experiências todas que vai tendo, vai ficando dono do seu corpo. Vai conhecendo seu corpo físico e a energia específica que tem. Esse processo acontece independente do nível de consciência que o indivíduo tenha.

Esse corpo físico tem um paralelo com as emoções. Tudo o que acontece no corpo físico, está acontecendo também no nível das emoção. Reich dizia que existe uma unidade funcional entre mente e corpo. Isso significa que toda situação física tem uma emoção acompanhando e toda emoção tem uma reação ou uma situação física paralela. O que acontecer tanto no físico como no emocional vai alterar o outro lado.

Tudo que vivemos num nível físico ou emocional vai alterar a energia , que é tanto física como emocional. Então quando falamos em corpo físico, em energia ou em emoção estamos falando da mesma unidade de funcionamento. E da mesma forma qualquer um deles é influenciado e influencia o padrão de pensamento do indivíduo.

Um exemplo : uma pessoa que se sente um perdedor, terá um corpo de perdedor, suas emoções são de um perdedor, seus pensamentos são de um perdedor, e sua energia será de alguém que é e será um perdedor.

Não existe um desencadeador, e sim uma rede de interferências, onde se pode acompanhar o movimento, as interrelações. Assim não dá para dizer o que desencadeou o padrão de perdedor, mas sim que cada um dos elementos - pensamento, corpo, energia, emoções - são interdependentes e se desencadeiam e se mantém.

Os acidentes, os sintomas, as doenças seguem esse mesmo padrão de funcionamento. As experiencias de vida podem manter esse padrão ou trazer alguma alteração, a partir de qualquer um dos elementos.

Existe essa identidade funcional também nas várias partes do corpo, nas funções corporais, nos sistemas corporais, na postura, no funcionamento dos órgãos, para citar alguns itens.

Exemplificando : os ossos, o esqueleto tem uma função de dar estrutura ao corpo, de dar forma e mantê-lo. Se esse sistema está funcional, possibilitando uma postura adequada e equilibrada, a pessoa também terá uma postura adequada e equilibrada no aspecto emocional, de atitudes e posturas na vida. Dependendo de como o rim está desempenhando sua função de filtragem dos elementos corporais, eu terei um paralelo de como o processo de filtragem emocional está acontecendo com aquela pessoa. O pescoço tem a função básica de juntar a cabeça ao corpo, num nível de funcionamento integrado ele mostra como está a situação da pessoa no sentido de juntar a "cabeça" - o racional, os pensamentos, com o "corpo" - o emocional, energético, instintivo.

Desta forma todas as experiências de vida - sejam as rotineiras, sejam as mudanças, sejam as traumáticas, vão alterando o corpo, a energia, a emoção. Se são experiências passageiras deixarão uma marca leve, que poderá a curto prazo ser encoberta por outros sinais. Se forem experiências repetitivas e intensas farão marcas mais profundas e alterarão definitivamente o corpo, a energia, a emoção e o pensamento.

OS MITOS FAMILIARES

Os mitos familiares são inerentes e específicos de cada família. São pré definições inconscientes que decidem o que pode e o que não pode acontecer, ser, circular naquela família específica; o que é certo e o que é errado. Os mitos familiares desencadeiam os mitos pessoais e os mitos profissionais, e vão definir os valores e as regras da família e dos seus membros, desencadeando suas posturas e suas crenças. E portanto definindo os seus corpos.

Esses Mitos são construídos trigeracionalmente. Ao nascer o indivíduo surge dentro de uma família, que já existia dentro dele. Já nasce em um corpo pré-definido, que tem seus valores, suas regras. O que pode e o que não pode. O fato de eu ter surgido naquela família já é uma parte do mito. No mito daquela família estava escrito que naquele dia nasceria uma pessoa assim para dar continuidade a situação mística.

Existem também os mitos situacionais, que vão se desenvolvendo dentro do sistema familiar, a partir das mudanças e das novas experiências.

Um dos lados negativos da situação mítica é que ela amarra, dificulta os novos movimentos, porque condena a viver dentro daquela regra. Um dos lados positivos, o lado vital do mito, é que ele te dá identidade, é necessário, dá identidade, estrutura, organiza e dá segurança.

O DESTINO - TEM QUE SER ASSIM PARA SEMPRE

Uma das angústias da situação mítica familiar é a vivência de que não tem saída. As pessoas, com consciência ou sem consciência, tentam mudar isso. Buscam diminuir a angústia ou quebrar o mito - se acomodando, se resignando, fugindo, negando, brigando e se revoltando, compreendendo como um "karma" - cada um dentro do seu funcionamento e possibilidade.

A LIBERDADE - PODE SER MUDADO

Existe a possibilidade de mudar, alterar as questões que os mitos e o inconsciente familiar construiu. Tem saída. Só que a saída pressupõe correr os riscos e pagar o preço da mudança. Essa é a diferença que faz diferença.

Lidar com a liberdade abre novos caminhos, mas o fundamental é correr o risco e pagar o preço da mudança e do desconhecido, do diferente. Correr o risco de algo que pode ser melhor mas que é risco. Correr o risco inclusive de voltar atrás. As vezes o risco nem é tão alto, mas o difícil é decidir, bancar.

A possibilidade de mudança, de liberdade começa com a tomada de consciência do seu próprio funcionamento, e da responsabilidade pelas escolhas. O que faz a diferença entre sobreviver ao destino ou viver a liberdade é o nível de consciência, é a tomada de consciência das suas escolhas. Ao se responsabilizar começa a ter clareza sobre o que está acontecendo, e sobre a situação mítica específica. A liberdade não vem de graça, precisa se lutar por ela, e aos poucos vai incorporando no seu corpo, se apropriando do desejo e da vontade e tentando.

O início da mudança pode ser:

   • pelo corpo - postura, sintomas, alimentação, respiração.

   • pela atitude - pré-conceitos, desejos, restrição, escolhas.

   • pelas relações - jogos, escolhas, depositações, carências e deficiências.

   • pelo padrão de pensamento - o que se pensa, se crê e se é.

Pode ser pelo corpo:

   › Trabalhando com seu próprio corpo pode-se ir tomando consciência de quais são suas posturas corporais. Pode ser um primeiro passo ir alterando essas posturas e acompanhando o que será desencadeado.

   › Avaliando os sintomas e suas mensagens simbólicas, metafóricas ou funcionais se pode ter indícios das questões de funcionamento mítico. E então ir mudando as questões relacionadas ou desencadeadoras.

   › Focando a alimentação - como é, quanto tempo de digestão, paralelos entre o processo digestivo e o funcionamento em outras áreas. Começar a alterar mudando a alimentação é uma boa proposta.

   › Tomar consciência da respiração e do padrão respiratório e em seguida trabalhar neles, se estará trabalhando os mitos.

Pode ser nas atitude com a vida:

   › Os preconceitos dão uma boa dica das questões míticas. Começar a mapear o que se tem preconceitos, flexibilizar os conceitos, avaliar todos os ângulos da situação, rever as relações e encaminhamentos, são alguns exemplos de como ir flexibilizando as idéias preconceituosas e suas conseqüências.

   › Os desejos que se tem, dão uma boa pista. O que se deseja, porque se deseja, com que intensidade e compulsão. São coisas mínimas, mas importantes para começar o trabalho.

   › O que não se faz, o que não se permite fazer, o que não pode fazer, porque tem restrição interna, que é uma proibição sem muita lógica, sem muita consciência, mas muito definidoras. Avaliar isto e ir refletindo, flexibilizando e encontrando outros caminhos.

   › As escolhas e os objetivos que pontuam a vida são formas de atuar as questões míticas. A base de qualquer mudança é a consciência do funcionamento e das atitudes.

Pode ser nas relações: pelas relações:

   › Nas relações se atuam os mitos. É onde aparece o melhor e o pior da pessoa. Onde as proibições e compulsões míticas mais definem a vida da pessoa.

   › Descobrir que jogos prefere jogar nas relações e tomar consciência do padrão de jogos relacionais abre possibilidade de fazer mudanças.

   › Refletir e avaliar como faz suas escolhas relacionais mais próximas e mais distantes dá muitas informações e possibilita mudanças míticas.

   › Avaliar como projeta no outro suas dúvidas, suas características menos valiosas, seus defeitos, suas dificuldades, vai mapeando o que enxerga no outro e que é seu, e abre hipóteses de mudanças.

   › As carências - Quem é o culpado? Quem me supre? Do que preciso/gostaria de ser suprido? São pontos importantes que clareiam seus aspectos de carências e funcionamento.

   › As deficiências, os pontos cegos, aqueles que todo mundo diz que você tem e você tem certeza que não tem. Ficar atento às falas das outras pessoas sobre você, sem rebater, só internamente registrando.

Pode ser no padrões de pensamento:

   › Ficar atento ao que se pensa. Aquilo que passa na cabeça é o que se acredita, o que se acredita é o que se é.

   › Desenvolver a consciência do que se está pensando em todos os momentos. O que pensa quando dirige, quando acorda, quando levanta, quando adormece. Assim se percebe que se tem um padrão fixo de pensamento. Alterar pode começar pela alteração do que pensa.

O corpo mostra o mito. O corpo é formado pelo mito. Mito é o que pode e o que não pode.

As Regras da vida, definem o corpo.

Pode ficar sem saída, com maior ou menor felicidade, preso dentro.

Ou pode ousar.