Famílias com Adolescentes

Capítulo do livro "Manual de Terapia Familiar"

Luiz Carlos Osório e Maria Elizabeth do Valle

e colaboradores

Artmed

Porto Alegre

2008

Solange Maria Rosset*

 

1 Sobre adolescência, pais, famílias e adolescentes

Quando comecei a trabalhar como psicoterapeuta, existia um senso comum na psicologia e na população em geral sobre a relação de adolescentes e seus pais. Era esperado que adolescentes tivessem problemas com seus pais, pois existia a idéia inquestionável do chamado “conflito de gerações”. A inevitabilidade do conflito entre pais e filhos, por causa de hábitos, moral, regras diferentes, justificava de uma forma simplista e dava uma explicação linear para as dificuldades. Além disso, dava a comodidade de um bom álibi e deixava pais, filhos e terapeutas sem ter muito que fazer.  Eu sempre tive dificuldade em aceitar essa explicação simplificadora, e todas as propostas que já fiz para trabalhar os adolescentes e suas famílias foram procurando outras saídas, outras circulações.

Algumas teorizações sobre a adolescência acabam colocando no mesmo patamar sintomatologias mais sérias e comportamentos desagradáveis, mas sem gravidade. O risco desse fato é dar para pais e adolescentes álibis para não se responsabilizarem. Ao mesmo tempo, ao dizer “adolescente típico”, pode-se estar justificando uma enorme variedade de comportamentos anti-sociais e autodestrutivos, alguns dos quais deveriam ser reconhecidos e tratados como problemas reais e sérios.

Nessa confusão gerada pela dificuldade em saber o que é ou não adequado, encontramos várias situações que podem ser disfuncionais. Em sua tentativa de serem bons pais, alguns pais suprem todas as necessidades e os desejos dos filhos; dessa forma, frustram seu crescimento, pois ter mais do que precisa impede os jovens de ter consciência dos seus desejos e necessidades e de aprender a lutar, pelas suas conquistas. Muitas vezes, os pais vão além das suas possibilidades, independente das suas condições econômicas, seja porque dar para o filho é uma forma de curar suas próprias dores de infância e adolescência, seja como uma forma de garantir o afeto filial, seja como uma forma de provar suas competências. Nesses casos, é comum que a cobrança e exigência com relação ao desempenho dos filhos ultrapassem a real competência deles, criando um ciclo vicioso de prover, não ter retorno, cobrar, álibis, prover...

Nos dias de hoje, um exemplo comum é o de filhos cronologicamente adultos, que não trabalham e ficam na casa dos pais, dependendo deles e sobrecarregando-os. O álibi mais usado nessas situações é “Somos frutos do que vocês plantaram” ou “Estou procurando algo de que realmente goste” ou “Estou me preparando”. Se os pais acreditam nisso, contribuem para a infantilização do filho e não terão argumentos que justifiquem seu desejo de que o filho vá para a vida, vá trabalhar, vá se sustentar. Junto com a pergunta “Por que correr risco, se tem tudo aqui?”, surge a sensação de incompetência. Muitas crianças e adolescentes superprotegidos têm certeza da sua própria incapacidade. Nunca testaram sua competência e, assim, têm uma auto-estima muito rebaixada. É comum que os pais superprotetores também tenham uma auto-estima rebaixada, o que faz com que esperem que, dando em excesso para os filhos, sejam amados por eles, sentindo-se potentes e melhores. Então, surge outro problema: como a gratidão dos filhos nunca vem na medida esperada, sentem-se mais rejeitados e aumentam os cuidados e mimos. Dessa forma, entra-se em outro círculo vicioso: quanto mais os pais dão e fazem, mais se sentem no direito de esperar retorno, de ser amados e qualificados por serem cuidadosos. Porém, os filhos ficam cada vez menos hábeis em dar carinho, retorno e qualificação aos pais, necessitando cada vez mais de cuidados, atenção e atendimento.

Uma das razões de encontrarmos verdadeiros tiranos dentro de casa é a supervalorização do respeito para com os filhos. Respeitar os direitos dos adolescentes é necessário; porém, quando é demais, só atrapalha. Uma coisa é respeitar os direitos; outra é achar que eles têm direito a tudo! Se os pais não assumem seu direito e dever de colocar limites nos desejos, no espaço, nas pretensões dos filhos, não vão ensiná-los a respeitar regras e limites, nem se responsabilizar pelas escolhas e conseqüências; assim, criam adolescentes que querem ter todos os bônus das situações, mas sem pagar o ônus pelo que têm ou recebem.

No trabalho com adolescentes e suas famílias, digo que a adolescência é a fase de definir que tipo de adulto ele quer ser. É a época da vida para checar valores, definir gostos e preferências, descobrir habilidades e incompetências. E, mais importante ainda, decidir de que forma vai ler sua história e quais capítulos vai escolher escrever. O desenvolvimento da flexibilidade e da responsabilidade é ingrediente importante para fazer dessa fase um marco de crescimento e individuação com autonomia. Isso significa que os jovens vão se responsabilizando por suas próprias decisões, mas sentindo a segurança da orientação dos pais.

Acredito, também, que são tarefas de um adolescente funcional: estudar e/ou trabalhar, ter uma turma e amigos, ter vida afetiva e/ou sexual, tomar parte nas tarefas da casa. Estudar e/ou trabalhar é a forma de preparar-se para o futuro, de acordo com as características econômicas, sociais e culturais da família. Ter uma turma e amigos é exercitar sua incursão no mundo social, lidar com lealdades, frustrações, limites, competências, pertencimento, entre outros componentes das relações, além de experimentar valores e funcionamentos diferentes da sua família. Ter vida afetiva e/ou sexual é uma possibilidade de aprender a lidar com intimidade, ciúmes, parcerias, colocando em prática o que viu e introjetou sobre relacionamentos, casal e sentimentos, a partir da relação dos pais, e descobrindo que pode ser diferente e aprender novos ângulos e novas formas de relacionamentos. Tomar parte nas tarefas de casa significa compreender a importância da divisão de atividades caseiras e responsabilizar-se por elas. Os direitos e deveres passam pela questão de que os filhos não são os donos da casa; sem a menor dúvida, a casa é dos pais. Na prática, isso significa que quem manda são os pais, mas que quem vive nesse espaço precisa se responsabilizar por estar ali e contribuir para a organização e manutenção. É importante a participação dos filhos nos cuidados com a casa; porém, o mais importante é que as tarefas sejam verdadeiramente necessárias e que sejam democraticamente distribuídas. Democraticamente significa que elas devem ser adequadas à faixa etária, à situação de cada um na família e às outras tarefas de cada um dos membros.

A adolescência não é uma fase fácil. A mesma crise de identidade da pré-adolescência mantém-se; em algumas circunstâncias, piora. Não é adulto (mesmo que exigido em algumas tarefas e resultados); não é criança (mesmo que mantido na “cozinha com as crianças”, nas horas importantes); não tem vida sexual permitida (mesmo estando com sua energia de sexualidade a mil por hora); não é bonito nem feio (mesmo que seja ou possa ser, não mantém o que enxerga); não é capaz nem incapaz (pode, sabe, quer muito, mas nem sempre acredita que e no que sabe, pode ou quer). É uma fase de angústias, ansiedades e indefinições; e é muito importante que as pessoas que estão próximas de adolescentes lembrem disso.

Pais que conseguem desenvolver sentimentos e comportamentos de respeito e compartilhamento podem ajudar os filhos a passar por essa fase. No entanto, pais funcionais assumem que têm responsabilidade e direito para exercer autoridade e limites. Muitas vezes, em nome de serem bons pais, sacrificam as próprias crenças sobre o certo e o errado, abandonando os filhos à cultura da época. No passado, os pais pareciam ter poucas dúvidas quanto aos “nãos” a dizer, e o adolescente aprendia a transgredir, a assumir responsabilidades pelas próprias ações, a enfrentar conseqüências. Alguns pais de hoje, que têm hesitação quanto à propriedade de limitar as ações dos filhos, geram confusão e ambigüidade para o jovem, a quem não se explica, mas se exige o cumprimento de regras de convívio em grupo.

Na aceleração de mudanças físicas, sexuais e de definição da própria identidade, o adolescente pode desencadear confrontos com os pais. Muitas vezes, os pais, como pais ou como casal, precisam rever suas próprias questões. Quanto mais estruturadas suas próprias identidades, quanto mais clareza sobre seus valores, quanto mais clara estiver sua consciência das próprias competências e incompetências, menos reativos eles serão aos desafios adolescentes dos filhos.

Pais que gostam da própria vida – que têm seu próprio foco, seus objetivos, seu espaço e sabem buscar seu próprio prazer e realização – facilitam sua relação com o filho adolescente e do filho com ele mesmo.

 

2 Sobre princípios e relações sistêmicas

Ao trabalhar com famílias, é importante relembrar os princípios relacionais sistêmicos que me norteiam e que, em muitos casos, são úteis de serem ensinados aos clientes.

Na compreensão linear, cartesiana, o foco ou a preocupação principal na avaliação das situações é descobrir o porquê das reações e dos fatos. Isso se dá pela crença na simplicidade da compreensão dos fatos: se for definida qual é a causa, tem-se controle sobre as respostas, os efeitos. Sistemicamente pensando, sabe-se que não existe uma causa que desencadeia um fato. Sabe-se que, se o olhar for ampliado, ver-se-á sempre uma infinidade de causas que desencadeiam situações, que desencadeiam outras, que desencadeiam outras. A avaliação é muito mais complexa, exigindo disponibilidade em olhar todos os ângulos e as situações sem pré-conceitos.

A preocupação sistêmica é de enxergar o quê e como algo está acontecendo. Então, o foco não é no passado, buscando-se algo ou alguém culpado pelo que aconteceu, mas no presente, avaliando-se quem está envolvido na situação, de que modo, quais são os padrões relacionais que estão ocorrendo. Assim, mais importantes do que os conteúdos são os padrões de interação e funcionamento, sempre conectados com o momento e o contexto.

No pensamento linear, o desejo é de encontrar explicações e compreender.  Na proposta relacional sistêmica, o desejo é de buscar novas alternativas de funcionamento e mudança.

Pensar dessa forma traz à tona a questão de que não existem vítimas ou bandidos, culpados ou inocentes. Acreditar que eles existem é uma forma simplista de ver e lidar com as situações relacionais. Se nos posicionamos como juízes, vítimas ou bandidos, a realidade fica delimitada, os papéis e as hipóteses ficam cristalizados e muito pouco há para fazer além de condenar, punir, culpar. Acreditar que os lances de relacionamento são circulares, são co-desencadeadores e que o comportamento de um desencadeia e mantém o comportamento do outro, e vice-versa, abre novas possibilidades de compreensão. Dependendo do ponto em que a atenção é colocada, pode-se enxergar diferenças totais no desenvolvimento das seqüências comportamentais. Se compreender que todos são parceiros na situação, todos passam a ser completamente responsáveis pelo que acontece; a ser responsáveis e potentes: podem desencadear, mudar o andamento, encerrar.

Quando a vida é pensada sistemicamente, uma das primeiras coisas das quais se abre mão é da segurança de que existe o certo e o errado. Não existe a separação, a clareza entre o certo e o errado, pois o certo muda e perde a importância dependendo do ângulo que a situação é olhada. O certo só é certo, a verdade só é a verdade, se formos fixar um olhar e não mudar de ângulo, de contexto, de configuração.

Funcionar sistemicamente faz uma profunda diferença nas relações, principalmente nas relações entre pais e filhos.

Se os pais acreditarem que não existe certo e errado pré-definidos, vão treinar isso no dia a dia com os filhos: não vão definir as regras a priori, mas redefinir caminhos a cada passo, estando disponíveis para refletir e rever suas verdades e decisões. Se souberem que não existem vítimas e bandidos, vão olhar as situações com novos olhos e, ao invés de crer que seu filho “sacaneia”, ou que estão se sacrificando por ele, vão poder enxergar como estão construindo essa história em conjunto, depositando expectativas, mágoas ou raivas de forma contínua. Se compreenderem que tudo é uma questão escolhida e o que faz a diferença é o nível de consciência dessas escolhas, vão direcionar sua relação de forma a facilitar a tomada de consciência e de responsabilidades, tanto a sua como a dos filhos que estão preparando para a vida.

Existem alguns tópicos que são comuns a todas as famílias, de uma forma ou de outra. A discussão sobre eles pode ser uma ajuda preciosa para as famílias com adolescentes.

  • Expectativas
  • Uma dificuldade que a maioria dos pais encontra é lidar com a situação de quando os filhos não saem como era esperado. Essa frustração pelo produto final, que não fica de acordo com as especificações iniciais, piora muito quando os comportamentos, os defeitos, os erros dos filhos são mais sérios e concretos. Na verdade, filhos nunca saem como a expectativa, pois eles não são obra dos pais; podem ser, no máximo, seu projeto, que foi reorganizado, redesenhado, posicionado de forma diferente. Quanto mais os pais aprenderem a lidar com essa frustração, com a sua própria carência, e a manter sua auto-estima, independente do quê e no quê o filho transformou-se, mais aptos eles vão estar para acompanhar os movimentos novos e diferentes dos filhos. Só dessa forma vão poder compartilhar e até intervir em alguns momentos. Apesar de ser difícil lidar com as situações e relações, os pais precisam saber que ser diferente do projeto alheio pode ser muito saudável e funcional.

  • Duplas mensagens
  • Na minha compreensão, duplas mensagens são inevitáveis. Elas fazem parte de qualquer ser humano, em qualquer relação. Quanto mais consciência o adulto tiver de que age assim, mais controle poderá ter sobre essa compulsão, dando chance para que o filho explicite o que está acontecendo, e ambos possam chegar a um denominador comum.

  • Ensinar o que se vive
  • Outro assunto que atinge a todos os pais é o desejo de que seu filho seja feliz. No entanto, não é possível conseguir o bem de seus filhos antes de ter encontrado seu próprio caminho e seu próprio bem, pois o bem deles depende estreitamente disso. Não se ensina o que não se sabe. Não se mostra o que não se tem. Os pais que querem o bem do seu filho só o conseguirão se buscarem e encontrarem o seu próprio bem. Felicidade, alegria, tristeza e frustração de um pai passam para os filhos pelo comportamento, pela energia, pela fala, pela expressão; isso cala mais fundo do que todos os conselhos, explicações, ensinamentos e exigências que se façam.

  • Ensinar e aprender contínuos
  • Os pais podem aprender muitas coisas com seus filhos, se estiverem atentos. É sempre uma aprendizagem de mão dupla: enquanto se aprende, ensina-se; enquanto se ensina, aprende-se. Os pais, certamente, precisam aprender tudo o que o filho precisa; se já sabem, podem aprimorar. Ao pensar dessa forma, muitas possibilidades de aprendizagem vão surgindo.
    Se os pais têm dificuldades em lidar com suas emoções, seja em expressar, seja em ter consciência do que sentem, seja em controlar os impulsos, podem aproveitar a chance que a vida lhes dá para aprender enquanto ensinam seus filhos.
    Se os pais aprenderem a buscar sua felicidade, sua saúde e sua coerência, os filhos, inevitavelmente, irão buscar a sua. “Ensine sendo e aprenda fazendo” é um ditado verdadeiro para essa relação.

  • Passando mensagens
  • Nem sempre é fácil explicar para os pais como as coisas podem ser e são passadas para os filhos. A maioria deles diz: “Eu nunca disse isso a eles”; “Nunca mostrei minha opinião” ou outras frases do gênero. Na verdade, o que é passado para os filhos nem sempre segue o caminho do racional, do explícito, do consciente.

    Desde o nascimento, os filhos estão sob a influência dos pensamentos dos pais, das suas emoções, de tudo que têm consciência, mas também do que não têm consciência. Esses componentes passam para os filhos através do que é dito e através do que não é dito, do que é evitado, do que é escondido. A forma como as pessoas fazem e dizem é tão ou mais importante do que os conteúdos que são explicitados. O que se grava é a emoção do momento.

    Na lida das questões emocionais, é importante o processo de tomar consciência do que se sente, para poder expressar sentimentos e emoções; assim, no treino da expressão, poder-se ter controle sobre o que se sente e o que se expressa. Esse caminho exige tempo, treino e supervisão. Os filhos que podem ser acompanhadas pelos pais nessas aprendizagens serão mais ricos e seguros no terreno emocional.

    Levar a sério as emoções dos filhos exige empatia, capacidade de ouvir e vontade de ver as coisas pela ótica deles. Exige, também, uma dose de generosidade.

  • Padrões de funcionamento
  • É no seio da família que a pessoa define seus padrões básicos de funcionamento. Padrão básico de funcionamento significa a sua forma específica e repetitiva de ser e de reagir em todas as situações; são os mecanismos que usará para viver e sobreviver, as suas escolhas ao compreender e relacionar-se com as pessoas e situações. Tal padrão constrói-se no entrelaçamento das relações familiares, através do que é dito e do que não é dito, das normas explícitas e das regras que são passadas de forma sutil, nos olhares, nos toques, nas palavras e nos atos. Os padrões de funcionamento mantém-se, independente das mudanças dos conteúdos, dos fatos e das explicações.

  • Potência da família
  • A família tem potencial e potência de atrapalhar ou de curar os seus indivíduos. Quando estão envolvidos num problema com alguém da família, podem perder o discernimento, pois sua auto-estima e sua imagem estão danificadas. Além disso, há o medo de não conseguir resolver, a dor pelos erros cometidos, a frustração por não ter dado conta, por ter falhado.

    Se compreenderem que têm sua própria competência interna, seus membros poderão sempre acionar esses instrumentos para cuidar-se, proteger-se, curar-se e, assim, poder crescer, aprender e enriquecer sempre mais.

    Lealdade, responsabilidade, tolerância, divertimento e bondade – essas são algumas das características positivas da vida familiar, pelas quais se enriquecem uns aos outros. Reconectarem-se com sua potência interna faz muita diferença no aprimoramento e desenvolvimento das questões familiares.

  • Liberdade
  • No uso adequado da autoridade, os pais definem regras e limites; assim, organizam a vida dos filhos. Isso possibilita que os filhos aprendam a fazer escolhas, a regular a si mesmos, a responsabilizar-se. Então, conforme crescem, os pais podem diminuir o cuidado e o controle, à medida que os filhos aumentam sua autonomia e liberdade.
    No entanto, é importante lembrar que liberdade ganha-se após prova de competência. As discussões dos filhos sobre os seus direitos à liberdade – porque acham que deve ser assim, porque os amigos têm, por hábito de discordar – nem sempre levam a decisões funcionais. Todos têm esses direitos; cabe aos pais definirem as habilidades que seus filhos devem ter para adquirir cada novo degrau na liberdade, e cabe aos filhos mostrar, concretamente, essas competências.

  • Pais separados
  • Muito já se escreveu e disse sobre pais separados, principalmente que, quando um casal se separa, é o vínculo conjugal que se dissolve e não o parental. No entanto, nem sempre os pais conseguem se organizar dessa forma. O funcionamento que tinham como casal acaba se mantendo na relação de pais dos filhos.

    Um mau hábito de muitos casais em crise é usar o filho como arma nos conflitos conjugais. Eu chamo de usar o filho, seus sintomas, suas dificuldades, suas habilidades como “bucha de canhão”. O filho fica sem defesa alguma e sai da situação vendo perdas dos dois lados: daquele que o usa, pois é sinal de falta de respeito usar alguém, e daquele que foi o foco, pois corre o risco de ser retaliado por ele. Se faziam isso quando casados, farão também após a separação. É importante que os pais enxerguem seu funcionamento e que os filhos aprendam a se protegerem.

  • Vingança do bom filho
  • Após vários anos de trabalho clínico, enxerguei e delimitei um padrão de funcionamento que se apresentava na vida adulta de muitas pessoas: adultos que “não davam certo” na sua vida ou em algum departamento dela. Fui vendo que essas pessoas eram bons filhos, adequados, amorosos, respeitosos; faziam tudo de forma a não dar brecha para os pais queixarem-se deles ou punirem-nos, mas fracassavam em alguma área da sua vida, que sempre eram aspectos muito importantes para seus pais ou para um deles. Percebi que isso acontecia com filhos de “boas famílias”. Famílias com pais “normalmente bons e maus”, que se doaram aos filhos, que procuraram o melhor para seus filhos, que lhes passaram boa moral e bons costumes. Fui enxergando que a pior dor de um pai ou de uma mãe era um filho que “não dava certo”; um filho que não realizava seu potencial na área que era a mais importante para eles. Compreender esse mecanismo que chamo de “a vingança do bom filho” ajuda os adolescentes a escolherem novos caminhos, responsabilizando-se pelo que vão fazer com o que receberam dos seus pais, sem precisar fracassar como uma forma de vingança surda e compulsiva. Mais sobre esse assunto pode ser visto em Rosset (2007).

     

    3 Sobre Terapia Relacional Sistêmica

    O processo terapêutico no enfoque relacional sistêmico pode ser visto em Rosset (2001), como também em Souza e Rosset (2006).

    O trabalho clínico relacional sistêmico é direcionado para auxiliar o cliente a:

    Para desempenhar essa tarefa, o terapeuta irá trabalhar descobrindo e focando os padrões, os álibis, o funcionamento do cliente, de forma a poder:

    Enxergar o padrão de funcionamento do cliente é um processo em que se necessita, inicialmente, de uma certeza do terapeuta sobre o aspecto que pode possibilitar mudanças estruturais no indivíduo e na sua rede de relações. A partir disso, o terapeuta irá sempre ouvir e ver o que acontece, mas estará com suas “antenas” conectadas para ver o funcionamento que está por trás e que dá suporte para aqueles conteúdos e comportamentos

    O processo terapêutico estrutura-se a partir da definição de objetivos terapêuticos. A definição de objetivos deve servir como um fio condutor que auxilia o terapeuta a manter a coerência do processo, sendo um aliado, e não um mecanismo que manieta o terapeuta. Quando o cliente chega, tem seus próprios objetivos que podem ser coerentes (objetivo pertinente, viável, mensurável, terapêutico), confusos (desejo de mudança para outra pessoa que não está presente na sessão ou é “etéreo”, “gasoso”), inviáveis (deseja coisas que não são possíveis de ser alcançadas). No caso dos objetivos coerentes, o terapeuta vai juntar suas forças às do cliente para definir uma ação terapêutica. Nos outros casos, o terapeuta vai redefinir os objetivos (para que o cliente compreenda, mude e transforme o seu primeiro objetivo em algo trabalhável) ou trabalhar com o cliente durante um tempo, com o foco no desenvolvimento de pertinência para a mudança (o objetivo dessa etapa seria definir um objetivo trabalhável).

    A partir da discussão ou redefinição dos objetivos, estrutura-se uma programação do processo terapêutico, em função do que cada cliente necessita para atingir os objetivos, acordados ou redefinidos.

    Essa programação não é uma “cama de Procusto”*, nem um engessamento do terapeuta, mas um auxílio para que cliente e terapeuta saibam para onde estão caminhando e para quê. A programação só tem funcionalidade se for acompanhada de avaliações constantes e com a possibilidade de redefinição dos objetivos, do caminho ou da proposta terapêutica.

     

    4 Sobre a terapia de famílias com adolescentes

    A terapia com adolescentes e com famílias com filhos adolescentes foi sendo estruturada a partir das propostas da Terapia Relacional Sistêmica e das reformulações necessárias a partir da mudança dos contextos de tempo, da experiência e das reflexões. Trabalho focando a adolescência, como a fase de vida em que a pessoa pode escolher e construir o adulto que deseja ser, e a terapia, como uma das possibilidades de preparar-se para sê-lo. Na maioria das vezes, os filhos, bem escolados pelas teorias psicológicas, pela culpa dos pais e pelo álibi do “conflito de gerações”, têm dificuldades em aceitar esse objetivo da terapia e escudam-se nos erros dos pais, nos sofrimentos que viveram. Na maioria das vezes, esses erros e sofrimentos são comuns, normais, rotineiros nos embates de pais e filhos; porém, algumas vezes, os maus tratos e sofrimentos são intensos e devastadores. Uma das minhas preocupações é fortalecer pais e filhos para lidarem com as dificuldades reais, mas sem estancarem o processo, ficando presos nos jogos de culpas, desculpas, punições e retaliações.

    O trabalho, sem ser rígido ou fixo, segue os passos descritos a seguir, aproximadamente.

  • Recebimento da família e trabalho com a vinculação, o levantamento e a circulação dos sintomas e situações, redefinições, definições de objetivos
  • Após o pedido de atendimento, é realizado o primeiro telefonema com a pessoa que fez o contato, clareando o que está acontecendo, quem quer o atendimento, quais são as pessoas envolvidas e quais são os membros da família. É marcada a primeira sessão com todos os membros da família nuclear.

    Na primeira sessão, são colhidos os dados de identificação e das relações entre todos os participantes, os dados referentes à queixa, ao levantamento de todas as tentativas feitas para resolver a questão e ao posicionamento de cada membro sobre o que está acontecendo.

    Também são levantados os outros sintomas e queixas que existem na família com relação a todos os familiares, além do filho que desencadeou a vinda da família.

    Nessa altura do atendimento, vão sendo feitas as redefinições com relação às leituras lineares que a família traz da situação e às premissas simplificadoras. É um momento muito importante, pois dele depende a possibilidade de criar novas alternativas, novas leituras que possibilitem o trabalho terapêutico. É imprescindível que as redefinições sejam realizadas com clareza e firmeza, mas com respeito e compaixão pelas dificuldades e dores da família.

    A partir dessas redefinições, vai se trabalhar com o foco na definição de quais são as aprendizagens e mudanças que a família como um todo, cada um dos subsistemas e cada membro individual precisam, enxergam como necessárias e querem realizar.

    Durante toda essa fase, o olhar do terapeuta será muito menos para os conteúdos relatados, e muito mais para o padrão de funcionamento da família.

    Dependendo do quanto a família enxerga do seu funcionamento, da habilidade do terapeuta e de outras condições do contexto, essa fase pode durar de uma a quatro sessões.

  • Sessões familiares para trabalho com os objetivos de aprendizagens familiares comuns, definidos na primeira fase
  • As sessões dessa etapa serão realizadas com todos os membros da família, focando as aprendizagens e mudanças que foram definidas e que englobam todos os membros ou que dependem de reorganização e treinos conjuntos.

    É uma fase em que o importante é abrir novas possibilidades de rotinas, tarefas, compreensão das situações e aprendizagens, mas priorizando as relações familiares, as descobertas afetivas, a flexibilização e aquisição de novas estratégias para lidar com as dificuldades e os problemas, aprendendo a negociar as mudanças de relacionamento que devem acontecer. Outro elemento importante é possibilitar que a família deixe de ver o membro sintomático como o foco, passando a enxergar a família como um todo que está fazendo sintomas.

  • Trabalho com sessões individuais do adolescente sintomático e sessões de pais
  • O adolescente sintomático será acompanhado individualmente com o foco de responsabilizá-lo pela sua vida, auxiliá-lo a sair dos jogos repetitivos de depositações, críticas e desenvolvimento de sintomas. Independentemente da sintomatologia, o trabalho vai se desenvolver para que ele, cada vez mais, tenha consciência do seu próprio funcionamento, desenvolva as aprendizagens necessárias e instrumente-se para as mudanças que quer ou precisa fazer.

    No atendimento aos pais, foca-se nas dificuldades que eles têm nas funções e tarefas parentais, desenvolvendo parceria nas decisões e compreensões. De um modo geral, os pais precisam de acompanhamento para: aceitar a autonomia, a privacidade e os limites dos filhos; exercer suas regras sem culpa, mas com clareza e responsabilidade; lidar com os aspectos, de casal e individuais, que surgem e dificultam o processo do filho.

  • Novos encaminhamentos de acordo com o que for surgindo
  • A partir das necessidades relacionais surgidas nas sessões de família, nas sessões individuais e com os pais, outras modalidades de atendimento podem ser desencadeadas, focando as relações que necessitam de trabalho específico ou as novas aprendizagens, bem como para auxiliar na continuidade do processo terapêutico. Podem ser, entre outras: sessões de casal, sessões de família extensa, supervisão de pais, sessões individuais com outros membros da família, sessões com díades específicas, sessões com subsistemas.

    No desenrolar das sessões, são utilizados todos os recursos que parecerem úteis para atingir os objetivos de cada trabalho, entre eles: rituais terapêuticos, tarefas e prescrições, uso do tempo da sessão e dos intervalos, atividades complementares.

     

    5 Conclusões

    Essa é a forma que, no momento, direciona meu atendimento clínico com famílias de adolescentes. Sigo a proposta básica de que a tarefa do terapeuta é auxiliar seus clientes a terem mais consciência dos seus padrões de funcionamento, para poderem desenvolver as aprendizagens necessárias e, assim, estarem aptos a realizarem as mudanças pertinentes. Os encaminhamentos são adequados ao que é específico a cada uma das famílias atendidas.

    Quando comecei a trabalhar com terapia sistêmica, o que me seduziu foi a proposta da responsabilidade compartida, e essa atual forma de direcionar o trabalho com adolescentes continua testando a coerência daquelas minhas crenças.

     

    Referências

    ROSSET, S. M. Pais e filhos: uma relação delicada. 3. ed. Curitiba: Editora Sol, 2007. 128 páginas

    ROSSET, S. M. Izabel Augusta: a família como caminho. Curitiba: Editora do Chain, 2001. 176 páginas

    SOUZA, D. S.; ROSSET, S. M. A magia da mudança. Curitiba: Editora Sol, 2006. 240p.

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    * Psicóloga, psicoterapeuta relacional sistêmica, terapeuta de famílias e casais, supervisora em cursos de especialização de terapia de família e casal.

    ** Sobre o Mito de Procusto: “O criminoso assassino usava de uma técnica singular com suas vítimas: deitava-as em um dos dois leitos de ferro que possuía, cortando os pés dos que ultrapassavam a cama pequena ou distendendo, violentamente, as pernas dos que não preenchiam o comprimento do leito maior.” BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1989. v. 3. p. 156.

     

    Índice remissivo

    Psicoterapia -  Famílias – Adolescentes – Terapia Relacional Sistêmica – Adolescência – Pais – Filhos  - Álibis – Tarefas – Padrões de funcionamento – Processo terapêutico – Responsabilidade compartida