EIXO - 2 - TEMPORALIDADE NAS RELAÇÕES NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Temporalidade das Relações de Casal
Conferência
23/07/2004
1. Influências no tempo e nas relações do terapeuta de casal
Ao pensar em Tempo Mudança Casal inevitavelmente retomei minha história com casais e minha experiência como terapeuta de casais.
Muitas das minhas posturas referentes a este assunto são baseadas na minha crença de que o papel de terapeuta de casal, e o enfoque que ele dá ao seu trabalho dependem das suas vivências de casal e com casais de toda sua vida. A história pessoal do terapeuta influenciará todas suas escolhas profissionais, mas acredito que no trabalho com casais essa influência é mais crucial.
Minha primeira vivência com casais aconteceu em Setembro de 1952, quando minha mãe, ao saber que estava grávida foi contar para meu pai. Tenho certeza de que as emoções, dúvidas, conversas que circularam naquele momento começaram a me impregnar da noção do que era um casal, pra que um casal fica junto, o que o mantém ligado.
Com base no padrão de relacionamento de casal que eles tinham, fui criada: meu pai me incluindo, não na relação deles, que sempre foi claramente só deles, mas na relação de parceria com ele, e minha mãe mostrando para mim e para quem quisesse ver que para ela ele era o foco (tanto nas qualidades e bons momentos, como nas loucuras e sofrimentos).
Na minha fase de ações fantasiosas na infância (6-7) anos- minha atividade rotineira, após tomar banho e colocar pijama ( era a única menina entre muitos meninos, e a forma de minha mãe fazer a diferenciação era me colocar para dentro de casa após as 18 hs! ) era " receber minhas clientes de mentirinha, e que vinham com queixas de relacionamento com o marido, às quais eu aconselhava voltarem para casa, procurarem fazer coisas que lhes agradassem e fazerem coisas que deixariam os maridos melhores. E prescrevia tarefas, e dava duro nas que não se emendavam. Não tinha muita paciência com aquelas que voltavam com a mesma queixa sem fazerem mudanças".
Casei aos 18 anos e passei a exercitar ser casal.
Fiz minha formação em Psicodrama, Terapia Corporal e Formação Sistêmica.
Comecei a atender casais.
Estruturei cursos de Formação. Organizei com Tereza Paulus a Terapia Relacional Sistêmica. Escrevi livros. Criei filhos. Casei filhos.
O tempo e os tempos do meu trabalho em Florianópolis: Em 1986 trouxe para Florianópolis o Curso de Terapia de Família e Casal, nos moldes que tínhamos no Núcleo de Psicologia em Curitiba.
Foram 6 anos trabalhando com Formação e Supervisão de terapeutas de Família e Casal nesta cidade e com formação e supervisão de didatas. Certamente foram os anos em que criei e desenvolvi muitas das idéias que trago hoje incorporadas à minha forma de ser e trabalhar como terapeuta de casais. Sou grata aos meus "filhos catarinenses".
2. Mudanças nos casais e nas relações ao longo do tempo
Um sem número de obras e apresentações têm se dedicado a apontar e pontuar as mudanças nas relações conjugais nos últimos anos.
Essas mudanças ocorreram no seio do casal, nas famílias e na sociedade em, geral.
Algumas dessas mudanças afetam diretamente a relação do casal.
As tarefas e a forma de lidar com elas não são mais as mesmas. Muitas das atividades diárias de um casal de 30 anos atrás não existem mais hoje: cozinhar, lavar roupas e louças, fazer compras, hoje têm formas mais práticas, funcionais de serem realizadas. E a divisão de tarefas também mudou muito. Não é mais o conceito de tarefa de mulher e tarefa de homem que define quem faz o que, mas o tempo disponível de cada um, as potencialidades e competências de cada um, e o contrato que cada casal faz sobre as tarefas e sua divisão.
Os valores sociais e individuais também mudaram muito. O que era certo, correto, bom há décadas hoje pode ser diferente, ou pode ser questionado e reavaliado continuamente pelo casal.
As questões relacionadas com dinheiro e trabalho também sofreram alterações. Quem ganha, como ganha, o que fazer com o dinheiro, entre outros itens são organizados e discutidos e assumem formas diferentes para cada casal em particular. Não existe mais o jeito certo ou pré definido de lidar com essas questões. O poder que o dinheiro traz e dá, continua existindo, mas os casais passaram a dar valor e a obter poder também em outros ângulos da relação, como crescimento e desenvolvimento, habilidades emocionais e relacionais.
Outro aspecto das mudanças na relação de casal é o de que as pessoas estão com menos ilusão a respeito da idealização da relação e dos parceiros. Essa desilusão leva os participantes a terem dados mais reais do que podem contribuir e do que esperam dos parceiros. O casamento ou a relação de casal passa a ser um espaço que possibilita experiências, crescimento, aprendizagens. Além de um espaço para amar e ser amado.
As mudanças sociais e morais trouxeram outros tipos de uniões além da tradicional de casamento religioso e civil entre um homem e uma mulher. As vivências do casal de variáveis na sua ligação - divórcios, recasamentos, famílias reorganizadas de várias formas, relações funcionais e afetivas com ex cônjuges - e experiências familiares diferentes - uniões homossexuais, diferenças de idade, cultura e crenças- nos trazem tipos de conjugalidades variadas e as vezes inusitadas. Isso possibilita novas experiências, novas aprendizagens e novos objetivos nos relacionamentos.
Alguma características que vejo nos casais funcionais atuais:
- Sabem preservar sua feminilidade/masculinidade e sabem como criar momentos românticos, embora não façam disso o aspecto mais importante da relação. Gostam de viver uma lua-de-mel, mas têm plena consciência de que, na vida, tem hora para tudo.
- Combinam amor erótico com amizade, e essa combinação é um dos objetivos fundamentais da relação
- Preocupam-se em dar coisas a si mesmas, sem depender tanto de um parceiro para ficar de bem com a vida.
- Eles se fortalecem através das dificuldades do amor e da vida a dois, abrindo mão da magia em troca do real, e aprendem com os erros que cometem.
- Sabem que as relações saudáveis sobrevivem apenas com muita dedicação e que o amor exige esforço contínuo.
3. Mudanças de enfoque na terapia de casal ao longo do tempo
Quando comecei a trabalhar com terapia de casal, os casais buscavam terapia só quando a situação já estava insuportável. Na maioria das vezes, a razão da terapia era a busca de um ringue para as suas rotineiras e graves brigas ou de um auxílio para realizar a separação. O terapeuta era eleito como o juiz que iria dizer quem estava certo ou como o mágico que conseguiria fazer com que o outro mudasse e aceitasse as demandas desse.
Os objetivos da busca de terapia mudaram. Hoje, um número grande de casais procuram ajuda para melhorar a qualidade das suas relações. A terapia deixou de ser um ringue ou confessionário e passou a ser um espaço de aprendizagens e aprimoramento.
Na minha forma de fazer terapia de casal, atualmente, antes de iniciar o trabalho com os conteúdos e padrões dos casais, dedico tempo e energia para desenvolver nos participantes uma pertinência adequada para a mudança. Foco o desejo de cada um deles em mudar seu jeito de ser e estar naquela relação, e à partir dessa mudança poderem mudar o padrão de interação do casal. Acredito que mergulhar na crise do casal com um nível muito baixo de disponibilidade para se responsabilizar e mudar, é um risco de aumentar a dor dos participantes sem a possibilidade de criar novas estratégias para as dificuldades que têm.
Esse trabalho com o objetivo de desenvolver pertinência começa já no primeiro telefonema. Não facilito muito a vinda do casal e já começo a trabalhar a pertinência para a mudança levantando questões, passando tarefas, refletindo ângulos.
O trabalho terapêutico irá focar o padrão de funcionamento do casal. O que está acontecendo, como acontece e prá que acontece. Desta forma não me atenho aos conteúdos mas direciono para que eles tenham cada vez mais consciência de como funcionam, de que forma reagem, quais são suas compulsões. Trabalhar desta maneira, evita o risco dos parceiros virem à terapia para que o outro mude e foca a mudança em cada um deles e na forma que se relacionam.
Entre as várias estratégias e técnicas que uso com os casais em terapia , uma das mais eficazes é o uso de rituais. Os rituais ajudam a manter ou a mudar os paradigmas das relações familiares e de casal. Ao mesmo tempo que os rituais mantém a continuidade do vínculo do casal, eles abrem a possibilidade de ocorrerem mudanças nos tempos e nas ações simbólicas ou concretas do casal.
4. O tempo na relação de casal
4.1. Nos casais que tenho atendido nesses quase trinta anos, tenho comprovado a tese de que o casal é a história que seus membros contam. Todo terapeuta sabe disso, vê isso, mas acredito que este fato é mais visível nas relações de casal. No relato sobre o outro e sobre a relação, as descrições ligadas ao tempo podem ser muito diferentes e criar histórias completamente diferentes para cada um do par.
4.2. Outra questão comum é de como os parceiros que estão em crise mantém a imagem do outro bloqueada ou congelada no passado, seja no passado que era bom, seja no passado do que o outro fez de errado. Ë muito comum não enxergarem as mudanças e as novas nuanças do outro e da relação.
4.3. Com relações as brigas também enxergo uma diferença importante. Quanto mais funcionais eles são ou vão ficando, mais eles brigam por situações atuais e concretas. Quanto mais disfuncionais eles estão mais eles usam motivos e situações do passado para suas disputas e brigas.
4.4. As diferenças na maneira de cada parceiro lidar com o seu próprio tempo e com o do outro também são responsáveis por muitas das dificuldades dos casais. Essas diferenças aparecem tanto no dia a dia como nos registros e relatos. No dia a dia podem ter relação com rapidez ou morosidade em executar as tarefas, ritmos diários diferentes, formas de cumprir horários e agendas, tempos e ritmos de fala, de movimentos e de decisões. Nos registros e relatos aparecem as diferenças de memória, a intensidade ao relatar fatos, a fidelidade ou não a datas e horários dos fatos, a importância e/ou lembrança das datas importantes.
Essas diferenças são inevitáveis, mas o casal pode lidar ou pode aprender a lidar com elas de formas mais funcionais. Abrir mão de que o seu modo é o certo é o primeiro passo para aprenderem a flexibilizar, a cooperar e a se enriquecerem com formas diferentes de lidar com o tempo. Isso será com certeza mais útil do que competirem sobre qual é a forma correta, ou usarem as diferenças para desqualificar o jeito do outro.
5. O tempo na terapia de casal
O uso do tempo na terapia de casal pode ser no conteúdo do trabalho terapêutico e como instrumento da terapia.
5.1. No conteúdo do processo terapêutico
No conteúdo do processo terapêutico, o tempo pode ser usado como uma forma de desenvolver posturas dos clientes que facilitem olhar a situação sob novos ângulos e que facilite enxergar outras possibilidades na mesma situação além das já vistas. Uma das formas que uso é fazer presente o passado e o futuro, pois acredito que é uma forma eficaz de desbloquear relatos congelados no passado e também aliviar álibis e temores teóricos sobre o futuro. Isso pode ser feito usando-se técnicas variadas, mas o mais importante é a postura do terapeuta em circular e redefinir as situações.
Outra forma de trabalhar essa questão é procurar manter o equilíbrio entre memória e esquecimento. Desde que li sobre isso no livro "Os Tempos do Tempo" do Luigi Boscolo, tenho trabalhado muito com os casais nesse ângulo de que excesso de memória ou excesso de esquecimento na relação de casal, impede mudança e crescimento.
5.2.O tempo como instrumento terapêutico
O tempo como instrumento terapêutico pode ser usado de várias formas: instrumentando os minutos que o casal passa na sessão - como um tempo especial, de novas aprendizagens, de novos relatos e novos treinos -, usando os intervalos, a organização de tarefas ou rituais com o uso específico do tempo, a delimitação do tempo para os seguimentos pós terapia - adequando-os ao momento e às aprendizagens dos clientes.
Acredito que um dos papéis da terapia seja o de instigar processos de transformação, e a instrumentação do tempo ajuda nisso.
6. O tempo do terapeuta na Terapia de Casal
6.1. Sua vivência de tempo
As experiências que o terapeuta teve ligadas ao tempo, sejam prazerosas, traumáticas, conscientes ou não, irão ajudá-lo ou não a usar adequadamente as questões de tempo profissional.
6.2. Sua forma de ser no tempo
O padrão de funcionamento de cada terapeuta vai dar a tônica do seu uso, das dificuldades, da possibilidade de flexibilizar e instrumentar.
6.3. O tempo e sua teoria
Todo terapeuta tem uma teoria de base, aquela que lhe formou. Aquela que ele primeiro pensa ao ter uma dificuldade ou problema. E, a forma como essa teoria pensa, usa, questiona, define o tempo vai interferir ou até definir como o terapeuta vai lidar com o tempo no seu trabalho.
Quando trabalho na formação de terapeutas, costumo dizer que o que importa não são as dificuldades ou facilidades de um terapeuta. O que realmente faz diferença é o nível de consciência que ele tem delas, pois só assim poderá ter controle, e se for o caso, alterá-las.
7. Meu tempo e eu terapeuta
7.1. Minha história - como me formou terapeuta
Comecei contando a história dos meus pais como casal, esses e outros fatos e vivências da minha vida me direcionaram para ser terapeuta, ser terapeuta sistêmica e ser terapeuta de casal.
Esses fatos são, conscientes ou não, responsáveis pela minha crença de que não existia o jeito certo de fazer, existia a escolha e a responsabilidade pelas conseqüências. Valores, experiências familiares, perdas, relações foram me construindo terapeuta de mudança e de tomada de consciência.
7.2. Meu padrão de funcionamento - como me moldou terapeuta
Ontem ouvi duas pessoas falando sobre meu último livro "O casal nosso de cada dia". Uma delas dizia que tinha achado interessante a forma como organizei as questões, ao que a outra argumentou : "Não sei, não! Ela é intervencionista!" E isso soava como se eu tivesse uma doença contagiosa!
E mais uma vez eu voltei a pensar : "Ë esse o meu rótulo? O que significaria se fosse esse o meu rótulo?."
E posso dizer prá vocês que não é um rótulo que encaixe bem com o que faço. Ou melhor não é só isso que eu faço.
Eu sou uma terapeuta moldada no tempo pelo meu padrão de funcionamento. Que é ser direta, explícita, gostar de dar minha opinião e ocupar espaço, ser corajosa, entre outros traços. Esse padrão já foi muito compulsivo e cada vez passa a ser mais consciente e com mais controle.
Sendo assim, eu sou uma terapeuta que uso tudo o que sei - vivências, leituras, aprendizagens, técnicas, relacionamentos - tudo o que tenho disponível - técnicas, encaminhamentos, momentos e situações - para auxiliar os meus clientes a terem cada vez mais consciência da forma como funcionam, a adquirirem cada vez mais controle e responsabilidade sobre seus atos e relações.
7.3. Meu trabalho com casais na passagem do meu tempo
Hoje, minha forma de trabalhar é esta: sou um instrumento de auxilio para os meus clientes irem adiante no seu processo de vida.
Hoje tenho muito menos verdades, muito mais disponibilidade. Hoje o meu melhor é aquilo que posso ter ou dar de mais útil para os casais readquirirem a sua potência de mudança e compreensão.
Hoje eu tenho certeza de que além de toda técnica, de toda teoria, de toda a compreensão, o que realmente faz a diferença, o que realmente me torna uma terapeuta eficiente é minha forma de relação com os clientes.
É minha possibilidade de ser firme quando a situação exige, mas acima de tudo de ter compaixão pela dor, pela dificuldade, pela resistência e pelo sofrimento de quem me procura para terapia.
8. Conclusão
Fechando estas leituras sobre Tempo e Mudança nas Relações de Casal confirmo minha crença de que o espaço de casal é o lugar privilegiado para que as pessoas percebam seus padrões de funcionamento, tomem contato com as aprendizagens pessoais que são necessárias e assim possam fazer as mudanças pertinentes no seu próprio padrão de funcionamento e no padrão do casal.
9. Bibliografia consultada
ANDOLFI, M. A crise do casal - Porto Alegre: Artemed, 2002. Cap 5 A terapia do casal como processo transformativo
BOSCOLO, L. Los tiempos del tiempo - Una nueva perspectiva para la consulta y la terapia sistémicas. Barcelona: Paidós 1996
NEIMEYER, R. A. Construtivismo em Psicoterapia - Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. Cap 6 - O desafio da mudança - Greg J. Neimeyer
PAPP, P. Casais em perigo : novas diretrizes para terapeutas. Porto Alegre: Artmed, 2002. Pg 77 - Cap 4 - Relógios, Calendários e Casais O tempo e o ritmo dos Relacionamentos - Petetr Fraenkel e Skye Wilson
ROSSET, S. M. Terapia de casal . O casal em transformação. Trabalho apresentado no 9. Encontro Paranaense de Psicologia, Conselho Regional de Psicologia - Paraná, Foz do Iguaçu, 1997.
ROSSET, S. M. Pais e filhos : uma relação delicada. Curitiba: Sol, 2003.
ROSSET, S. M. O casal nosso de cada dia . Curitiba: Sol, 2004.