O USO DA TEORIA GERAL DE SISTEMAS NA PRÁTICA CLÍNICA

Solange Maria Rosset

Abril de 1996.

 

I - Histórico

O conceito moderno de sistema estabeleceu-se progressivamente durante as 3 ou 4 últimas décadas, através de vários ramos de ciências técnicas e através de pesquisas científicas, de grandes operações militares da 2a guerra mundial e do estabelecimento de contabilidades econômicas nacionais.

A contribuição dos Estados Unidos, principalmente de suas grandes universidades, foi decisivo. Alguns nomes devem ser citados entre os "inventores" deste conceito novo:

Von Bertalanffy havia assinalado, desde antes da última guerra, a expressão "teoria do sistema geral", às vezes traduzida como "a teoria geral do sistema". Ele fundou, em 1954, a Sociedade para o "Estudo dos Sistemas Gerais".

Norbert Wiener, professor célebre, participou durante a guerra no aperfeiçoamento de aparelhos de pontaria automática para canhões antiaéreos; ele notou uma semelhança entre as anomalias do comportamento destes aparelhos e certas alterações que acontecem no homem devido a lesões do cerebelo; daí nasceu uma aproximação entre neurologia e fisiologia, matemática e engenharia. Ele publicou, em 1948, sua famosa obra: Cibernética.

No mesmo ano, Shannon, engenheiro de telecomunicações, publica uma outra obra essencial: "A teoria matemática da comunicação".

Entre os anos 40 e 60, assistiu-se à uma notável explosão de conceitos e noções novas em numerosos domínios destas ciências. Este fenômeno ficou localizado, principalmente, nos Estados Unidos que o beneficiou então de um notável dinamismo, não somente científico, mas, também econômico e político. Este grande movimento, sobrevindo num país particularmente pragmático, correspondia a uma nova necessidade: a de dispor de uma nova "ferramenta conceitual", capaz de ajudar na resolução de complexos problemas nos mais diversos domínios: criação de instrumentos de guia para tiros aéreos, compreensão do funcionamento do cérebro humano, conduta de grandes organizações industriais, fabricação dos primeiros grandes computadores.

Racionalismo clássico e sistêmico: Até agora a ciência ocidental tinha-se edificado sobre o famoso racionalismo herdado por Aristóteles e colocado em prática no "Discurso do método" de Descartes, em 1637. Parece útil, aqui, de remarcar os 4 preceitos fundamentais que Descartes julgava suficientes para conduzir todo trabalho de pesquisa:

- O primeiro era de não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira antes de ser a mesma conhecida como tal, quer dizer, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção...

- O segundo, de dividir cada uma das dificuldades examinadas em tantas parcelas quantas possíveis ...

- O terceiro, de conduzir, por ordem, nossos pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco os degraus até o conhecimento dos mais compostos ...

- E o último, de fazer sempre divisões tão completas e revisões tão gerais que estejamos seguros de nada omitir ..."

Para compreender a grande distância que separa o racionalismo cartesiano do novo enfoque sistêmico, vamos citar algumas definições de "sistema":

Para Von Bertalanffy, é um conjunto de unidades em inter-relações mútuas.

Para J. Lesourne, é um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações.

Estas 3 definições citadas valorizam a noção de inter-relação e totalidade, e as seguintes acentuam a noção de complementaridade:

A de Rosnay - Conjunto de elementos em interação dinâmica, organizados em função de uma finalidade.

A de Ladrieré - Objeto complexo, formado de distintos compostos ligados entre si por um certo número de relações.

A de Morin - Unidade global organizada de inter-relações entre elementos, ações ou indivíduos.

 

II - Compreensão Sistêmica

Sistema

Sistema é uma estrutura hierarquicamente organizada, em interação entre as partes e com o meio buscando o equilíbrio dinâmico.

Um sistema é, então, composto de elementos. Mas isso não quer dizer que ele é a soma dos elementos, como o raciocínio cartesiano nos induziria a pensar. Ele é um Todo não redutível a suas partes. O Todo é mais do que Forma Global, ele tem qualidades emergentes que as partes não possuíam.

As propriedades do sistema são mais e/ou diferentes da soma das propriedades das partes. O Todo é mais do que a soma das Partes.

Qualquer sistema é parte de um supra-sistema, que por si mesmo mostra todas as qualidades de um sistema. Supra-sistemas são também partes de um sistema de nível mais alto - "Supra-suprasistema", e assim ao infinito.

De forma semelhante, cada parte de um sistema é por si mesma subsistema que mostra características do sistema. Subsistemas também tem partes "sub-subsistemas" e assim por diante.

É possível ver qualquer organização de partes como uma entidade (sistema), como um supra-sistema para suas partes componentes, ou como um subsistema de uma organização maior ou mais complexa.

Funcionamento dos Sistemas:

1 - Propriedades e/ou funções semelhantes são observáveis em todo sistema, em subsistemas e em supra-sistemas. Esta similaridade é conhecida como isomorfismo.

2 - Um sistema é compreendido dentro de seus limites. Interações com outros sistemas se realizam através do limite (membrana). Essas transações consistem na entrada ou saída de energia e/ou informações e/ou matéria. A natureza do limite ou membrana (rígido, poroso, permeável, etc...) e seu estado de abertura ou fechamento define as transações possíveis.

3 - Todo o sistema tem duas funções básicas de regulação de energia vital:

a) Função de Abertura - Capacidade do sistema de se abrir para estabelecer trocas com o novo e o desconhecido. Esta função promove o crescimento, o reabastecimento e a renovação das forças do sistema.

b) Função de Fechamento - Capacidade do sistema de se fechar em si, na manutenção da coesão do sistema e garantia da sua identidade, lealdade.

Este processo contínuo de abrir e fechar, chamado regulação do limite, distingue os sistemas vivos dos sistemas não-vivos. Nos sistemas vivos, a função de abrir e fechar o limite é automaticamente controlada. Eles regulam entrada e saída para conservar estabilidade e para moverem-se na direção de uma organização mais complexas, para crescer, diferenciar funções e desenvolver subsistemas especializados.

Os processos de conservar estabilidade (morfostase) e os processos de diferenciar-se, crescer, mudar (morfogênese) ocorrem simultaneamente e continuamente em todo sistema vivo. A interação desses dois processos é um equilíbrio de fluxo.

4 - O sistema está inserido num contexto, ou seja, nas circunstâncias específicas de Espaço e Tempo.

5 - Estrutura de um sistema - Compreende a ordem e a relação dinâmica dos elementos do sistema. (Desde os elementos presentes até as suas leis, regras, estratégias, ideais, ritos e mitos)

6 - Hierarquia de um sistema - Compreende a ordem de subordinação dos poderes. É uma distância de posições que é útil ao funcionamento do sistema. É ligado com as partes do todo, níveis de direitos, deveres e poderes.

7 - Organização de um sistema - Compreende o arranjo de relações entre os componentes. Engloba um aspecto estrutural (organograma) e um aspecto funcional (funções, programa).

8 - Riqueza e complexidade - O grau de complexidade de um sistema depende, por um lado, do número de relações que ligam estes elementos entre si. A originalidade do sistema é proporcional à riqueza de informações que ele contém.

9 - O sistema é regulado pelas Leis, Regras e Estratégias.

Leis - desde as leis da Natureza até as leis místicas do sistema. São inexoráveis, imutáveis, inconscientes. ( É )

Regras ou Normas do Sistema - são invariáveis. Respondem pela coerência e estabilidade do sistema. Funcionam como o estatuto interno que regulamenta: o permitido, o exigido, o proibido. As regras mantém a estrutura do sistema, controlando os sentimentos, as relações do Poder. São semiconscientes ou inconscientes. ( Tem que )

Estratégias - são mais ou menos flexíveis, plásticas, e variáveis. São mais ou menos conscientes, e guiadas pelas contingências do ambiente real do sistema. As estratégias mantém as regras, as quais mantém as leis. ( Pode )

10 - Para que o sistema continue existindo é necessário que as funções do sistema sejam cumpridas (Funções Básicas e Funções Específicas). Para isso, os elementos podem estar desempenhando suas funções, ou 1 elemento estar sobrefuncionando (fazendo excesso de funções) o que significa que o outro elemento está subfuncionamento.

11 - Todo sistema tem 2 tendências básicas: Tendência Integrativa e Tendência Auto-afirmativa.

A Tendência Integrativa faz com que o sistema (que passa a ser subsistema) fique integrada no todo, fique dependente. Essa característica de dependência leva a manter a identidade.

A Tendência Auto-afirmativa organiza como sistema autônomo, (ou supra-sistema) preserve autonomia individual do sistema, levando ao crescimento e à mudança. O ideal é que estas duas tendências estejam equilibradas, oscilando entre uma e outra.

O excesso de Tendência Integrativa leva à cristalização, enrijecimento. O excesso de Tendência Auto-afirmativa leva à separação do supra-sistema.

12 - Padrão de Interação - É a forma básica do sistema funcionar e interagir. Aparece através de elementos que se repetem sempre nas interações e que obedecem a regras fixas.

13 - A Interação entre os elementos de um sistema é a ação recíproca modificando o comportamento ou a natureza de seus elementos. A relação entre 2 elementos no sistema não é uma simples ação casual de um elemento A sobre um elemento B e de B sobre A.

A relação dita de retroação ou de feedback, na qual uma ação de B sobre A segue-se à primeira ação de A sobre B, foi evidenciado pela cibernética. Esta relação pode ser, ora ampliadora, e, neste caso, falamos de uma retroação positiva, ora compensadora ou reguladora, e, neste caso, falamos de retroação negativa.

No feedback positivo a mensagem de retorno atua reforçando a transação original (ampliando desvios) e assim criando mudanças. Muito feedback positivo pode levar a excessos mal adaptativos.

No feedback negativo a mensagem inversa atua cancelando a transação original (limitando o desvio) e assim mantendo a estabilidade. Muito feedback negativo pode levar a limitações mal adaptativas.

 

III - Uso da Compreensão Sistêmica e TGS na Prática Clínica

1. Compreensão Sistêmica na clínica

" A palavra sistema tornou-se um clichê na terapia familiar - uma palavra que perdeu muito do seu significado através do uso excessivo, da generalização e da elaboração acadêmica. Embora a teoria dos sistemas seja a pedra angular sobre a qual se baseia a terapia familiar, a diversidade de abordagens clínicas indica as diferentes maneiras nas quais um sistema familiar pode ser definido tratado ". Peggy Papp em seu livro "O processo de mudança" - pg 21

Esta afirmação nos mostra que quando se trabalha clinicamente a definição dos terapeutas sobre um sistema depende do principal foco de atenção que ele dá à família e se baseia no que ele acredita que está causando o problema, e como eles pretendem agir. Por exemplo: Definição cibernética de sistema (sistema homeostático auto-regulador que é ativado pelo erro e que se regula através de laços de feedback positivo e negativo a fim de manter seu equilíbrio); definição evolutiva de sistema ( uma unidade com um modelo interno que desenvolve níveis novos e não previsíveis de organização através do processo de mudança descontínua e de saltos imprevisíveis); a definição de Salvador Minuchin ( um sistema é definido de acordo com as fronteiras e a organização hierárquica); a definição de Murray Bowen ( a intervenção e a definição é baseada no conceito de triângulos e graus de diferenciação); Jay Haley, Cloé Madanes e a terapia estratégica ( definem em termos de estrutura de poder ); Boszormenyi Nagy (engloba as lealdades de três gerações); Mara Selvini Palazzoli, na primeira fase de seu trabalho sistêmico ( definia procurando os paradoxos sistêmicos), e assim muitos outros autores e terapeutas.

O importante é saber que todas as escolas de terapia sistêmica, independente do seu foco principal e das suas definições clínicas têm em comum a compreensão e a leitura sistêmica seguindo os preceitos básicos da Teoria Geral de Sistemas.

Pensar Sistemicamente é sair do reino das verdades estabelecidas, dos dogmas, para operar hipóteses, alternativas e aprendizagens novas.

É buscar Ver uma mesma situação de vários pontos de vista, procurando entender a forma como o todo e as partes se relacionam numa interação reciprocamente reforçadora e mantenedora da situação. É ir discriminando entre as semelhanças e diferenças.

Pensar sistemicamente é ver a realidade de uma forma holística, circular. Isto traz formas diferentes de Ver e Lidar com a realidade no nível clínico.

 

2. Diferenças no pensar e agir clínico :

Pensamento Linear Pensamento Circular
a) A preocupação, o foco, é com o "Por que" aconteceu. a) A preocupação, o foco, é com o "O Que" e "Como" está acontecendo
b) Causa-efeito S ---> R b) O trabalho é com a forma da relação e a rede de acontecimentos
c) Preocupação com o Conteúdo da história. c) Preocupação com o Levantamento do Padrão de Interação
d) Importância da Psicopatologia. Condutas normais e anormais. d) Importância do contexto referencial. As crises evolutivas do desenvolvimento humano são vistos como naturais
e) Aceitação dos Jogos de vítima e bandido e) Descoberta dos jogos de depositação complementares
f) Conceito de Normalidade = Doença e Cura f) Conceito de Saúde = Funcional e Disfuncional
g) Busca de explicações. Foco na compreensão g) Busca de novas alternativas de funcionamento Foco na mudança
h) Prioriza-se a Comunicação lógica - verbal (idéias, pensamentos lógicos formais) h) Usa-se a comunicação Paradoxal, Irracional, não verbal e para-verbal. Inclui-se o corpo com suas linguagens
i) Foca-se nas queixas, problemas e sintomas j) Foca-se nas dificuldades (que se mal administradas podem virar problemas).
j) Manutenção do Padrão Infantil (dependência independência) nas relações afetivas e de poder ( inclusive na relação terapêutica) . l) Desenvolvimento de Padrão Adulto (autonomia)nas relações afetivas e de poder ( inclusive na relação terapêutica).
l) Interpretação da resistência. n) Uso de intervenções sistêmicas: Diretas, Metafóricas e Paradoxais

 

3. Critérios de saúde

O critério de saúde de um sistema (individual, família, casal, grupo) é dado pelo nível de funcionalidade/disfuncionalidade.

Sendo que funcional é quando o movimento do sistema leva à aprendizagem, crescimento, flexibilidade e desenvolvimento da autonomia sem perder a identidade, levando-se em conta o contexto (Tempo e Espaço).

 

4.Sintomas

O sintoma é compreendido como algo útil para clarear o Padrão de Interação do sistema, bem como para indicar as mudanças e aprendizagens necessárias. A razão e a lógica do sintoma podem ser vistos de inúmeros ângulos. Podem ser, entre outros:

a) Uma resposta funcional a um sistema disfuncional. Ex.: Enurese.

b) Uma resposta irracional a um contexto igualmente irracional (Paradoxal, Duplos Vínculos)

c) Uma forma de mudança no sistema, sem que nada de fundamental mude. Ex.: Alcoolismo.

d) Um sofrimento menor, na tentativa de evitar um sofrimento maior.

e) Uma depositação, mais ou menos maciça, em uma das pessoas, de uma função ou papel que deveria ser distribuído por todos os elementos do sistema.

f) Uma metáfora da situação de estresse vivido pelo sistema e depositado em um dos elementos.

g) A explicitação das dificuldades do sistema.

 

5. Padrão de Interação

4 - Através das Interações, aparece a Forma de Relação entre os componentes do sistema (sub-sistemas), que vai delineando o Padrão de Interação do sistema.

O Padrão de Interação é a repetição de uma seqüência de lances (como num jogo) ou de interações (verbais e/ou não verbais). São elementos que se repetem sempre, e que obedecem a um conjunto de Regras fixas. Essas regras são fixadas em função de "valores maiores" do sistema, tem a tarefa de manter as Leis.

A forma específica (e mais ou menos flexível) que o sistema e seus sub-sistemas utilizam para manter suas regras, são as Estratégias. Um dos objetivos do trabalho clínico é flexibilizar, ter clareza e aumentar o número de estratégias funcionais do sistema.

Texto escrito em Junho 1990

Revisto Abril de 2001

 

Referências bibliográficas:

1. Textos elaborados por Zélia Nascimento

2. Mudança - Paul Watzlawick, John H. Weakland e Richard Fisch

3. Pragmática da Comunicação Humana - Paul Watzlawick, Don D. Jackson e J. H. Beavin

4. Fundamentos da Estrutura de Vida Autônoma - James E. Durkin

5. Jano - Apêndice - Arthur Koestler

6. Teoria Geral dos Sistemas - Ludwing Von Bertalanffy

7. Instrumental para o pensamento - C. H. Waddington

8. Ponto de Mutação - Fritzjof Capra

9. O Método (I, II, III, IV) - Edgar Morin